SOBRE A PALAVRA “COMPANHEIRO”
Por:
Priscila Gontijo (AO Ceu Quinta do Sol, Equipe Leste 1)
Começo dizendo que não tenho o menor problema com a
palavra "companheiro". Ao contrário, é uma palavra da qual gosto
muito. Na minha infância ouvia o meu pai e seus amigos dirigirem-se uns aos
outros dessa forma, e sim, eles eram militantes políticos de esquerda. E daí? O
que é passado precisa cair na obsolescência? É a tal regra de mercado?
Mesmo na contemporaneidade, a palavra não perde o seu valor, porque é uma
palavra carregada de afeto e ainda acredito na cumplicidade das pessoas que se
organizam e trabalham juntas, das pessoas que atuam dentro do mesmo projeto.
Ainda mais sendo esse projeto do campo artístico-pedagógico.
Por falar nisso,
o que estranho é justamente a palavra "programa". Programa sim, me
parece algo esquemático, um dispositivo midiático. Algo um tanto mecânico.
Programático. Se for para criar implicância com alguma palavra, prefiro afastar
as de modelo cinza-chumbo, sem calor, sem intimidade.
Engraçado e sintomático me parece
esse incômodo com uma palavra afetiva, no caso, "companheiro" e
nenhuma estranheza com palavras frias, quase gélidas, apenas conceituais como:
mecanismo, dispositivo, aparatos, "trans" qualquer coisa, hoje tudo é
"trans".
CUM + PANES em
latim é o mesmo que dizer eu compartilho o pão com você. Em alemão é GAYLEIBEN,
ou seja um pão grande.
Companheiro é
uma palavra testemunha, ou seja tem sim um quê de ideologia por trás. Ao mesmo
tempo que quer dizer: "eu quero compartilhar algo com você."
O fato de
termos uma leitura monológica para algo que é polissêmico diz muito da nossa
época. Uma época totalmente ligada ao monólogo e pouco dialógica. Ser
dialógico, na minha humilde opinião é: "eu não gosto da palavra, mas
entendo a sua visão".
COMPANHEIRO é
uma palavra que combina perfeitamente com o processo teatral por ser uma arte
coletiva, de compartilhamento.
Entra aqui uma
questão delicada, a da interpretação. Podemos interpretar através do senso
comum. Ou podemos abraçar a polissemia que tal palavra apresenta.
"As
palavras dizem o que são", escreveu Aristóteles.
Não vejo problema algum entre pessoas que
atuam juntas em um projeto tão potente como o Vocacional se tratarem por
companheiras. Não é porque nos desiludimos com os movimentos de esquerda que a
palavra tenha que ser sepultada, é? O velório será quando? Por favor, me
convidem.
Gosto da
intimidade. Acho que o mundo carece de intimidade. Acredito que uma pessoa ao
chamar a outra de companheira é menos uma retórica vazia e mais um grito surdo,
um apelo ao afeto. Pelo simples fato de que essas duas pessoas estão no mesmo
barco e lutando pela mesma coisa. Algo liga essas duas pessoas e o que importa
é esse algo. Somos ordinários em nossas picuinhas, em nossas rivalidades
vazias, somos ordinários em nossas andanças, em nosso projeto de café da manhã,
em nossa busca por palavras ideais. O que existe de extraordinário é a obra
artística, é o compartilhamento de um saber (que é diferente do conhecimento, a
sabedoria é atravessada de afetos). Extraordinário é o nosso companheiro.
Aquele do outro lado, virando a esquina e caminhando pra morte.
Definitivamente
essa é uma palavra que me soa bem.
Porque
independentemente de soar piegas ou não, quero continuar acreditando que atuo
em um projeto junto a outros companheiros artistas, pedagogos, pessoas
atravessadas pelo afeto, pessoas atravessadas.
Teve um dia na
Assembléia que alguém começou a falar e todos chiaram, houve um burburinho de
reclamações por todos os lados. E então, o Pedro Felício comentou em voz baixa,
nada autoritária, parecia que falava consigo, mas eu ouvi: "Deixa o
companheiro falar. É importante ouvir o companheiro".
Aquilo me
atravessou. Como escreveu o Jorge Larrosa Bondía: "parar para escutar,
parar para olhar, parar para sentir. Ser atravessado. Parar. "
Ali, eu parei. E me senti junto
aos meus companheiros e escutando o outro, (vamos lá, segundo Benveniste o
"eu" só existe porque existe o "outro", a criança só entra
na subjetividade, ou seja, só entende o "eu" a partir do outro. A
alteridade vem antes da identidade.)
"Deixa o companheiro falar". Achei bonito
o modo como o Pedro falou, foi generoso, foi afetivo.
Trabalhamos em
um programa que se pauta na vivência compartilhada, na troca de experiências,
no embate entre as singularidades. Falamos tanto disso!
Se faz parte do
universo de um, a palavra "companheiro", tudo bem, se faz parte do
universo do outro, a expressão "dentro dos conformes" ou a música da
Beyoncé, ok. Não é assim dentro do programa Vocacional? Aprender a lidar com as
diferenças, respeitar as singularidades, as idiossincrasias, as
particularidades de cada um, lidar com as contradições?
Somos capazes
disso? A Assembléia é um espelho do que acontece dentro da sala de aula.
Não acho essa
uma discussão banal, são essas as brechas que ajudam a revelar certas luzes,
que nos flagram e nos ajudam a crescer. JUNTOS.
Sim, temos que
ouvir muitas vezes coisas que não gostamos, discursos repetitivos, pessoas que
não respeitam o turno da outra. Companheiros, democracia é isso.
Um pouco de
humor, por favor.
Muita gente não
fala nas reuniões (sou uma delas) por conta também desse tipo de restrição. De
patrulha. Patrulhamos a nós mesmos! Num programa que prima pela diversidade.
Sejamos mais
afetivos, digamos mais a palavra "companheiro" e menos a palavra
"dispositivo" ou "mecanismo".
O que faz o
processo artístico funcionar por exemplo, no Ceu Quinta Do Sol vem muito mais do
companheirismo instaurado ali dentro pelos vocacionados do que por alguns
conceitos que tento compartilhar.
Porque a obra de
arte é a experiência da Beleza, e a Beleza é algo que nos afeta. A poesia, a
música, o teatro, a dança ou a arte pictórica não é feita para os críticos ou
para a rádio patrulha, é para compartilhar a experiência do belo. Assim, como
uma borboleta sem asas.
Respeitemos
nossa falta de asas.
Sejamos
precários.
"Deixa o
companheiro falar".
(Isso é tão ou
mais importante do que a 866666666)
Abraços
companheiros,
Priscila
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