Um processo
sensível para a história e outros procedimentos que quebram o
vidro.
Renato Vasconcelos
AO Dança - Galeria Olido
São dois os pontos de partida para desenvolvimento da pesquisa
artística direcionada para orientação das turmas do Vocacional
Dança na Sala Vitrine da Galeria Olido, um treinamento físico
direcionado para o corpo cênico, realizado dentro de um recorte
muito específico, que são as tendencias da dança moderna, e o
universo poético e sensorial influenciado pela artista brasileira
Lygia Clark.
Dois pontos que podem funcionar como rios de muitos afluentes, as
vezes similares e as vezes antagônicos. Esses afluentes estão
ligados as questões políticas, filosóficas, ideológicas,
estéticas e históricas e também estarão relacionados aos
princípios básicos da pedagogia do Programa Vocacional.
A escolhar pelo treinamento a partir de abordagens da dança moderna
americana, se dá por dois fatos, o primeiro está ligado a demanda
dos próprios vocacionados, pois os primeiros inscritos para os
encontros de dança do Vocacional eram profissionais, que já estão
acostumados com as técnicas de dança moderna e desejavam
aproximar-se da minha orientação para uma troca de conhecimentos a
cerca do assunto “dança moderna” e suas práticas corporais.
Todavia a minha orientação não pretendia aprofundar as bases da
dança moderna americana, em termos de exercícios práticos, pois a
minha formação técnica é bastante hibrida e por outro lado as
premissas do Programa não visam tal desenvolvimento.
O segundo fato é histórico. A dança moderna americana encontrou em
São Paulo um celeiro de artistas interessados em suas técnicas e a
partir delas esses artistas construíram outras tantas técnicas, que
foram favoráveis a história da dança contemporânea nesta cidade.
(SIQUEIRA, 2006; pp. 104-5)
Sendo que Célia Gouvea, Gícia Amorim, Dulce Pessoa, Ruth Rachou,
Claúdia de Souza, Sonia Mota, entre outros, fazem parte do quadro de
artistas que estão ligados as tendencias técnicas oriundas da
América do Norte e que de alguma forma fizeram parte da minha
formação como artista, cidadão bailarino.
As questões técnicas da dança moderna e suas várias abordagens
não estão limitadas a simples exercícios de treinamento físico
mecanizado. Afinal como em qualquer outra vanguarda artística, a
dança moderna está atrelada aos ideais de mudança dos paradigmas
clássicos. E para que esses ideais culminem em arte é preciso que
os envolvidos no processo cultivem forças interiores muito
profundas, do ponto de vista humano, assim como a força de uma
paixão, ou o sentimento de revolta diante da injustiça.
Essas forças e esses sentimentos foram corporificados pelos mestres
dança moderna, Martha Graham, José Limón, Merce Cunningham, Alwin
Nokolais, Hanya Holm entre outros. Cada um trouxe para si e para os
bailarinos de suas companhias elementos de movimentação que fossem
capazes de expressar o que eles pensavam, então as técnicas eram
frutos de ideologias, de paixões e de uma necessidade imensa de
mudar a realidade.
Ainda que eu e os vocacionados não consigamos juntos realizar os
exercícios mais difíceis de uma técnica, nós tínhamos que nos
apoiar em elementos gerais, presentes nas abordagens da dança
moderna, para nos mobilizarmos criativamente.
Esse talvez seja um primeiro ponto de intersecção entre a abordagem
do corporal, a inspiração em
Lygia Clark e a postura política adotada pelo Programa Vocacional,
que seria a emancipação.
Mas qual emancipação? Se atentarmos para as premissas pedagógicas
do programa, entenderemos que essa emancipação está ligada a uma
necessidade de mudança do comportamento geral do brasileiro, que
sendo um povo colonizado culturalmente foi se tornando um povo
dependente. Para que aconteça uma mudança no quadro político e
social que nos assola é preciso uma tomada de consciência de si,
dos outros e da nossa história, sendo assim, o material norteador do
programa aponta:
Para o conceito de emancipação,
objetivo que envolve toda e qualquer ação do Programa Vocacional,
partimos da distinção elaborada por Paulo Freire. Para este
educador, o ser humano com ser ético e consciente de sua infinita
não conclusão, não é vítima de um destino contra o qual não
pode lutar, mas é um ser que, coletivamente constrói uma história
e é por ela construído. O ser humano seria, por natureza, livre,
mas poderia não ter esta liberdade respeitada, mantendo-se
aprisionado por condições sociais e culturais externas e impostas.
(Proposta
artístico-pedagógica:
Material Norteador.
São Paulo: Vocare – Revista do Vocacional. Ediçao comemorativa
dos 10 anos, 2011.)
A principio seria incongruente falar de emancipação através do
fazer artístico abordando as questões ligadas a cultura da dança
norte-americana. Ocorre que o surgimento dessas danças foi fruto de
mudanças sociais no começo do século XX, quando a Revoluçao
Industrial ganhava seu ápice, e tais mudanças interferiram de tal
modo nas produções artísticas de diversas linguagens (MARIBEL,
1989, p. 133), que para mim, como orientador de dança, as abordagens
dança moderna servem como treinamento físico e como referencial de
reflexão das mudanças que vem ocorrendo no nosso país.
Algumas questões para a pesquisa pedagógica durante o ano seria
como aliar a ciência desenvolvida por Martha Graham, umas das
líderes da dança moderna americana, que inspirou a maior parte dos
coreógrafos dos EUA, que consiste em “três pontos essenciais:
inspiração-expiração, memória motora e movimento percutante,
isto é, poderoso movimento interrompido no seu auge”, o “cair
e recuperar-se de Doris Humphrey, outra grande expoente da dança
moderna americana”. (MENDES, 1985; pp. 67) e mais as
associações e dissociações de tronco e pernas, música e dança
que foram feitas por Merce Cunningham (AMORIM, 2000; pp.1000).
Aliar esses elementos físicos tinham o objetivo de dialogar com o
objetivo maior do Programa Vocacional, que é instaurar processos
criativos emancipatórios. Noutro ponto os processos criativos estão
associados a expressão e a expressão está associada a um
“tempo-espaço”, que não está neutro de história.
Se somos frutos dessa história, revê-la nos nossos corpos significa
“ressignificar” e também refletir. As atitudes, gestos e
posturas da dança moderna americana também fazem parte da nossa
própria história da dança. E é só a partir da experimentação
que o indivíduo consegue refletir e transformar. Nenhuma dança,
seja brasileira, americana ou africana, ficou parada no tempo como
obra de museu. O ser humano estava sempre mexendo nela e não deve
ser diferente dentro de um programa que pretende a emancipação do
indivíduo através de práticas artísticas que o levem a refletir
sobre sua condição no mundo. Experienciar proporciona ferramentas
para mexer e mudar.
Mas é a partir de Lygia Clark que fica possível lançar um outro
olhar sobre os processos criativos, Clark será aquela inspiração
artística e teórica que proporcionará uma ideia de não arte e uma
desvinculação com a história. A professora Maria Alice Milliet
analisando a obra da artista mineira, diz: “Existe em Clark uma
crença nos recursos intrínsecos do homem, mas desidealizada. Não
há modelo, nem norma: o que acontece é o processo de expressão e
ao mesmo tempo expressão do processo.” (1992; pp 156)
Então nesse caso tanto faz os processos históricos, uma vez que, o
que é intrínseco ao homem está dissociado de qualquer panorama
histórico, com isso Ligya Clark lança a luz necessária para as
premissas pedagógicas do Programa no tocante a valorização do
processo. E indo mais fundo, quando a artista brasileira, pertencente
ao movimento Neo
Concreto da década de 60, inverte o papel do
artista que produz para o que propõe, ela traz à tona uma ideia de
arte que não deve ser fruída, nem usada, mas experienciada “com
todo prazer ou dor desse conhecimento que emerge num vir-a-ser
corporificado e socialmente articulado.” (MILLIET, 1992; pp. 156).
É possível que a dança cênica esteja num vir-a-ser corporificado
e socialmente articulado, mas para os cidadãos artistas envolvidos
no Programa Vocacional , seja vocacionado ou orientador, tudo deve
ser experienciado, sem objetivo de imitação ou perpetuação da
tradição, mas para a instauração de um processo de alteridade,
subjetividade e coletividade.
Realizar coletivamente pequenos exercícios pre elaborados com base
em técnicas modernas pode gerar um sentimento de massificação a
primeira vista, mas com certeza os ideais propostos durante a
reprodução dos exercícios nada tinham a ver com massificação,
antes pelo contrário, pretendiam questionar toda e qualquer
estrutura no próprio fazer, mas também o acionamento de forças
interiores que mexessem e transformassem as sensibilidades assim com
objetivava Ligya Clark com suas propostas inovadoras.
Clark não aceita a arte como
tempero cultural, diletantismo ou lazer, como exibição de status
econômico ou de sofisticação intelectual. Pensa a arte integrada à
vida como força transformadora capaz de desinibir nossos desejos ,
realizar o imaginado. Recusa a recorrer a procedimentos
precodificados. Uma linguagem alterada ou alternativa deve resultar
do encontro de pessoas envolvidas num fazer desprogramado. A vivencia
de processos singulares do indivíduo e do grupo produzem eventuais
mutações na subjetividade, tendentes a romper com os modelos
dominantes. (MILLIET, 1992; pp 102).
Parece um contra senso apegar-se a dois modelos relativamente
diferentes, algo que está ligado ao desprogramado, via Lygia Clark e
de outro lado exercícios pré elaborados que fazem parte de uma
tradição acadêmica recente. Mas tudo isso tem a ver com o paradoxo
levantado durante minha formação acadêmica, quando então comecei
a desenvolver o projeto “Lygia Clark de polainas”, onde toda a
tradição de dança, desde o balé clássico até a dança
contemporânea, seria colocada em cheque diante de novas necessidades
expressivas.
Então a sensibilidade e a subjetividade proporcionadas por ambas as
tendencias, Clark e tradição de dança, possibilitariam novos
mecanismos para se dançar usando o publico de maneira efetiva na
construção de sentido, sem necessariamente fazer com que ele se
mexa, mas ao tempo suscitando nele uma gama de desejos reais que
poderiam transformar o momento efêmero da comunicação dançada.
No caso da orientação na Sala Vitrine usamos entre tantos
procedimentos de criação, um chamado “Beija Vidro”, em que
dialogo com o espectador gera a concretização do trabalho. Os
vocacionados passam batom e beijam a vitrine com diferentes
intensidades, querendo que o público olhe e reconheça estruturas
psíquicas de erotismo e sexualidade (fetiches e gêneros); passagem
do mundo infantil para o mundo adulto; movimentos políticos como
“existe amor em SP”, etc.
A participação se deu com olhares de estranhamento, inquisidores,
mas também risos, deboches, outros beijos. Sem dúvida sem essas
participações e respostas do público o procedimento se esvaziaria
em termos de proposição poética. Pela vitrine o povo é chamado
para perto dos artistas vocacionados e esses artistas se colocam a
disposição do público numa indefinição de papéis. O interior do
sujeito é remexido com as abordagens técnicas, não existe
fronteira entre o mundo de fora e o mundo de dentro, assim como era
para os dançarinos modernos.
A prática dessa nova
sensibilidade emerge na luta contra a violência e a exploração,
quando esta luta está comprometida com modos e formas de vida
radicalmente novos: negação total do sistema, sua moralidade,
cultura: afirmação do direito de construir uma sociedade na qual a
abolição da pobreza e do trabalho resulte num universo onde o
sensual, o lúdico, o calmo, o belo se tornem formas de existência e
portanto a Forma da sociedade. (MARCUSE, 1969, APUD MILLIET, 1992,
p. 103)
BIBLIOGRAFIA
AMORIM,
Gícia, QUEIROZ, Bergson. Merce Cunnigham: Pensamento e técnica.
Inn: Lições de Dança 2. Rio de Janeiro: Univercidade Editora,
2000.
FARINA, Amilcar, VILLARDI Fábio,
BERNARD, Isabelle, DELMANTO, Ivan, GENTILE, Luciano, SCHMIDT,
Luciana. Proposta
artístico-pedagógica:
Material Norteador. São
Paulo: Vocare – Revista do Vocacional. Ediçao comemorativa dos 10
anos, 2011.
MENDES, Miriam Garcia. A
dança – 1 edição.
São Paulo: Ática, 1985.
MILLIET, Maria Alice. Ligya Clark:
Obra Trajeto. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo,
1992.
PORTINARI, Maribel. História
da dança. Rio de
Janeiro: Nova Froteira, 1989.
SIQUEIRA, Denise da Costa Oliveira.
Corpo, comunicação e
cultura: a dança contemporânea em cena.
Campinas, SP: Autores Associados, 2006.