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sábado, 30 de novembro de 2013

PUERIS – UMA ELEGIA AO TEMPO - Por Hercules Morais

PUERIS – UMA ELEGIA AO TEMPO
Ainda que não seja, eu fui, sem sê-lo.
Por Hercules Morais - 
CEU CASABLANCA - SUL - TEATRO

“O teatro é síntese, mas não brevidade”.
(E. Nekrosius)

Geralmente, nos domínios das artes, tem-se olhado mais aos frutos do que à árvore que os dá ou cria. Nesta esteira mora o aspecto dinâmico da criação artística, acompanhando-a desde os seus intentos primórdios até à sua definitiva eclosão. Visto a produção artística não ser mera conseqüência do acaso, mas antes elaboração sensível e formação/interação adequada, o presente rascunho em linhas tortas, em palavras suspensas, visa apontar este limiar sensível do homem e seu entorno, nas organicidades vivificantes que nos tocam, para do subjetivo ir ao objetivo, o caminho inverso ao filho pródigo, morrer e depois nascer, as palavras que se desprendem terão inspiração na arquitetura - no paisagismo de Burle Marx - na física - no principio da incerteza de Heisenberg – uma elegia aos quarks, aos fótons e a todos os grãos de poesia do invisível que nos esclarecem e intrigam.
Esses retraços/retratos surgiram sentado no olhar que mira o muro do banco mal posicionado. Ali meu universo em uma casca de noz nasceu. Do fóton a universalidade do todo, o principio das matérias sólidas constituídas de luz.
A biblioteca vazia e fria me configura em estética relacional aos tempos vacilantes de nossa contemporaneidade, os freqüentadores do CEU não há vêem. Assim este exercício do efêmero - passeios ao léu – buscará relatar em retrato textual no limite da linguagem a descrição do fenômeno que ali se passa.
A dinâmica arquitetônica do CEU, compreende uma tensão entre aquilo que se propõe e aquilo que se verifica na prática, o que afinal significa Centro Educacional Unificado? Quando piso os pés nesta arquitetônica conjectura filosófica, não deixo de relacionar a Bauhaus e seu empenho de diálogo silencioso daquilo que se constrói em tijolos com aquilo que se visa construir em devir humano. A idéia por trás estaria na não dissociação entre áreas - o fim da hierarquia – com vistas a formação integral, os “blocos” cultural, esportivo, didático seriam todos funções complementares de um projeto da educação integral.
Para isso foi pensado um desenho arquitetônico e funcionamento próximo ao que o comércio sabiamente apropriou-se hoje, a exemplo: escadas rolantes em shoppings que te obrigam a circular por todo o espaço, sendo atravessado por promoções, cores, cheiros, sapatos, roupas, bolsas, ainda que seu objetivo primeiro era apenas ir ao banheiro nos caminhares apressados de nossa experiência moderna, essa inteligência da organização do consumo prova que pelo menos com um sorvetinho você vai sair. Assim deveria ser projetado o CEU sermos bombardeados por atividades que nos formam para além de nossos limitados objetivos iniciais, possibilidades formativas com vistas a esta educação integral em todas as potencialidades humanas, e que saíssemos pelo menos com um livrinho de poesias.
Na exploração e verificação da relevância deste ambiente de formação, criação e difusão, defendendo a compreensão de sua atuação, como forma ampliada de atender as necessidades de pensar os processos de ensino e aprendizagem em artes cênicas que nos ligamos como artistas que pensam seu tempo, e relacionam as possibilidades estruturais e a relação com o que podemos interferir.
Neste apontamento artístico-pedagógico da exploração do ambiente como vivência, se mostra a possibilidade de completude, artista-criador, que reflete e aprofunda-se em seu próprio processo - partureja-se em dor e alegria – se o fruto que aqui citamos é traduzido em beleza e obra, o fenômeno não se dá espontaneamente, é antes o produto deste esforço da vontade criadora que caminha essencialmente nas circunstâncias adequadas suprimidas e fomentadas por este ambiente de formação, o local adequado para que se dê.
Na formação do artista, do vocacionado, do cidadão, do homem, na formação da formação, o conhecimento da técnica é necessário para dar vazão à intuição, mas o essencial é a elaboração de sua visão de mundo. Este busca, por meio de uma linguagem singular desenvolvida ao longo da vida, compartilhar seu olhar. A obra de arte surge quando o mesmo consegue lançar um olhar crítico para o mundo e elaborar sua transmissão por meio de uma expressão própria.
A criação artística liga-se deste modo ao processo formativo educacional, criar em arte é um tormento enquadrado na moldura da inteligência, da vontade e da técnica e a exploração do tempo e das condições adequadas pode configurar-se em obra e processo emancipatório. Aqui não interessam os frutos colhidos verdes, tampouco os maduros, interessam à qualidade das sementes, sobretudo, a do solo, assim o tempo será o senhor da criação e sempre as safras serão consagradas nos encaminhamentos da própria natureza...

“Se a gralha faz ninho baixo e o melro alto
Haverá muita chuva nos meses de verão
Se o melro faz ninho baixo e a gralha alto
O verão será seco e quente”
(G. Bidault)

Quais experiências artísticas poderiam dialogar com toda essa dinâmica de arquitetura de nossa modernidade liquida? Estes pensamentos todos deveriam ser escritos por um sociólogo? Um educador? Um engenheiro? Um arquiteto? O que são as funções? A emancipação estaria no entendimento ativo do homem por trás da função? O jovem que não se limita a uma função ou cargo para pensar e, responder em arte o todo que o cerca, que o forma, que o deforma?

-Como a precarização dos espaços públicos pode interferir nos processos  criativos?
(Silêncio).
-Como um artista orientador e um grupo de teatro se veem obrigados a utilizarem-se do rasgo de uma cortina para construir uma estética de um espetáculo?
(Silêncio).
-O que significa melhorar?
(Silêncio).

ASSIM O SILÊNCIO DO BURACO NEGRO CRIOU NOSSO BIG BANG.

Ao descobrir a consciência e a relação propostas em uma formação cultural os sentidos recobram sensações e, como conseqüência recobramos a nossa própria existência.

O CONSTRASTE ENTRE O PROCESSO E A INTERVENÇÃO

Como nomear o que aí nasce se toda palavra é limite, sinal-a-menos e a realidade sinal-a-mais? (Affonso Romano de Sant-Anna)

Da Vinci olha para um bloco de mármore e tira as sobras da escultura que ali já habitava.

-Como fala isso?
-Como é o nome disso mãe?
-Por quê? Por quê? Por quê?...
-Mãe, as coisas que a gente vai fazer, mas ainda não fez, elas existem? Tipo esse quadro aqui. Antes do pintor pintar ele, ele já existia?

Ao passo que passa o menino e a mãe caminham de mãos dadas, tementes em atravessar na faixa a vida que transpassam. Dar nomes – ato humano por excelência – nomeando, pretendemos inscrever em nossa inteligência o ser do que foi nomeado. Em retraços sublinhados na companhia de meus grãos de poesia, escrevo, transcrevo, me meço, me excesso em escrita compartilhada com Perissé. Trazemos o objeto extra-mental para o âmbito da nossa consciência. E, a partir desse momento, podemos atuar sobre ele: para conhecer e cuidar, ou para manipular e destruir.
É divertido ver o menino que cria sua maneira faceira de fazer arte, de fazer ontologia, ‘ontologia’ palavra que amedronta, mas é constitutiva de nossa inocência/indecência, do menino que corre nu comendo a maça antes do pecado original, nas gêneses em gênesis? Essa gênese passiva deve compreender a interioridade do meu próprio universo, em emoções, sentimentos, volições, hábitos e tudo mais que emerge da estrutura de meu corpo. Na gênese ativa envolve a operância da atividade perceptiva da exterioridade, isto é, todo o fluxo da consciência intencional voltado para a busca do sentido, da estrutura eidética da objetividade, eidos/idéia ‘aquilo que se vê’ no sentido empregado por Homero, assim estrutura eidética da objetividade, como um dado que já está aí, na envolvência do âmbito inteiro da experiência.
Olavo Bilac no Caçador de esmeraldas:
 “Fernão Dias Pais Leme agoniza. Um lamento
Chora longo, a rolar na longa voz do vento.”
...estendeu para além das palavras (invadiu nossa percepção) o rolar do lamento pela morte do bandeirante – a aliteração empregada com maestria. O /o/ em lamento/chora/longo/rolar/longa/voz/do/vento, o /r/ em chora/rolar e o /l/ em lamento/longo/rolar/longa combinam-se ao /v/ em voz/vento, à rima lamento/vento e ao jogo longo/longa, alongando a voz chorosa que se desprende do ar, como se a própria natureza estivesse em agonia. Rolar em configuração fonética, é palavra que desliza – visualmente - na escrita, no arredondamento dos lábios de quem ouço pronunciar, sugere rolamento, consoantes liquidas /r/ e /l/ correspondentes ao movimento desimpedido e continuo.
O que já estava ali? A Natureza que jazia em agonia? Ou a invenção fonética da transliteração do mundo em palavras? O rasgo da cortina já existia?
Os poetas, em geral, aprendem a lidar com essa realidade e nela se sentem como peixes dentro d’água. Nem controlam totalmente a linguagem nem são por ela totalmente controlados.
“O idioma é a única porta para o infinito, mas infelizmente está oculto sob montanhas de cinzas” assim disse Guimarães Rosa. Que não poderia ser outra cor se não rosa, cor e flor, é imagem de poesia nos primeiros encontros de amor, os inícios de namoro que ofertam rosas, é perfume, Rosa, é a confluência dos sentidos em sentidos, a síntese da obrigatoriedade de ser que se foi. O poeta que aqui tece suas conexões têxteis, inventou o sentido da Rosa? A Rosa em Guimarães é sobrenome ou natureza que já existia? Que já estava ali habitava? A Natureza que jazia em agonia? Ou a invenção fonética da transliteração do mundo em palavras? Antes de o poeta nascer ele já existia.
Lançado a verificar nas etimologias as perguntas do pequeno menino grimpante, a pergunta para a mãe e seus redobros, dois dobros, re-dobros, de rolar, pedra que rola, mãe e filho, as pedras da existência que rolam em fio umbilical... “Amor” encontra-se com “mamar”, ligado vivamente ao infantil “mamãe”, balbucio do bebê ao colocar na boca seio materno (e “bebê” é balbucio também, da mãe amorosa que imita os balbucios do filho). Amar é dar este beijo em quem entrega o seio morno e alimentador, beijo que suga mas ao mesmo tempo dá prazer a quem se entrega.
“Antes de existir alfabeto existia a voz
Antes de existir a voz existia o silêncio
O silêncio
Foi à primeira coisa que existiu
Um silêncio que ninguém ouviu”
(Arnaldo Antunes)

Podemos então retomar uma das perguntas do início, é possível “ensinar” alguém a escrever e relacionar com sua história? No fundo seria como se nos perguntássemos, é possível ensinar alguém a olhar para o mundo, para o outro, para si mesmo? E mais especificamente, é possível ensinar alguém a deslocar esse olhar, a trazer para a criação, relação, compreensão algo que nos surpreenda, e principalmente, que não se esgote no próprio instante? Certamente não, não há fórmulas. O que não significa que não seja possível apontar caminhos, aprendendo caminhos, fazer e ser feito, ao nos depararmos hoje com as páginas do Quixote, nos permitimos ter acesso a algo que, mais do que a história de alguém que enlouquece e se imagina cavalheiro andante, é o olhar do autor para um mundo que se extinguia, e continua se extinguindo (outros mundos, outros homens) a cada leitura. A origem da palavra texto vem do latim, textus, têxtil. Portanto, a mesma origem da palavra tecido construção de uma malha de linhas formando um todo vigoroso e uniforme, texto o emaranhado de idéias, palavras articuladas, pensamentos e construção de sentidos.

Escrita refletida Têxtil de nosso processo, linhas de idéias


“Depois do Suzuki fomos assistir aos filmes do Expressionismo Alemão, A Paixão de Joana D’Arc e Nosferatus. Pudemos observar máscaras, fotografia e construirmos um olhar acerca de nossos exercícios e sensações já vivenciadas e do que estávamos visualizando nos vídeos. Expressões muito fortes, como o olhar profundo de Joana D’Arc, as conversas dos seus jurados, um cinema mudo, carregado de um simbólico multifacetado e que jogava fortemente com emoções e gestos. Já em Nosferatus, víamos fotografia, cores, narrativas, que corroboravam ao expressionismo. O que dialoga com nosso embasamento filosófico-epistemológico da criação e imersão no estado poético. Esse tônus sinergético só é possível se bebermos de múltiplas fontes expressivas artisticamente e se estudarmos a fundo a criação humana e sinestésica.
Partimos depois de assistirmos ao filme para um dos exercícios – que na minha concepção – foi um dos mais profundos que já desenvolvemos. Uma manifestação livre de emoções, gestos e expressões tendo como referencial os filmes assistidos. Dentro desse caleidoscópio plural e multifacetado pudemos experimentar um exercício muito denso e permeado de fortes emoções. Emergiram gritos, choros, risadas, todos viscerais e profundos de poesia. Foi uma catarse coletiva, muito perto de um surto. Foi um estado de experimentação, investigação e vivencia cênica que marcou a trajetória do nosso grupo”.
(Daniel Hernandez)
“Nosso orientador nos informou que veríamos um filme|doc chamado QUEM SOMOS NÓS esse que trata sobre a ciência da metafisica (uma das disciplinas fundamentais da filosofia) a palavra possui origem grega e significa:
Meta: depois de, além de.
Fisica|Physis: natural ou físico.
O assunto abordado é um grande alimento para mente e alma, e tem como objetivo estudar a ciência do mundo, a causa e a consequência, ação e reação, tudo é vai e volta. A liberdade, o sobrenatural, a causa primaria para todas as coisas, qual o papel que desempenhamos em nosso planeta. Matéria X espaço, se realmente estamos onde estamos os universos paralelos de cada ser humano e as suas ligações. Tudo o que me rodeia é constituído por átomos. O mundo subatômico! Sendo assim somos uma coisa só, um grande aglomerado de átomos e constituímos um objeto chamado Planeta Terra. Sou uma partícula de um sistema, que faz parte de outros sistemas, mas a forma que interagimos é a questão, como essa energia é distribuída de qual forma os vínculos são realizados e como eles são desfeitos e depois de tudo como são reajustados.
A nossa energia não limita-se apenas a nós mesmos, mas transcende as barreiras do imaginário e tornasse real, provando assim o nosso grande potencial, podemos ser o que quisermos ser, podemos chegar onde a mente nos levar, e podemos levar nossa mente e matéria a um alto nível disciplinar e fazer coisas realmente inimagináveis. Todos somos um. Fazemos parte de um organismo em que agimos individualmente, mas não vivemos sem a interdependência, a troca de energia, uns conduzem e outros são conduzidos. Temos de ter ciência de nossa grandeza enquanto seres humanos, do nosso potencial.”
(Wagner Ribeiro)


“Complicado explicar o tudo vivido, sentido, e compreendido dentro da caixa preta, é complicado também explicar o tudo Vivido, Sentido e observado Fora da caixa preta. No começo tudo era confuso primeira aula, fui sozinha, ninguém me arrastou até ali, pessoas novas até esqueci o nome do Orientador, Mais eu estava, ali... Buscando algo. Apresentamos uns aos outros, nome, idade, profissão, meio de práxis foi o que pensei; A cada semana me instigava mais a querer estar ali não era as pessoas não era o professor não era o local, Era eu, eu queria sentir como é eu queria saber o que eles estavam falando que na primeira aula me pareceu gregos e confusos. Hoje sei exatamente o que era aquilo que disseram nas aulas anteriores fui aprendendo, vivendo, e compartilhando. Teria que escrever um livro pra contar tudo o que foi, mais quero apenas uma única folha. Existem marcas, sentidas, escondidas, mostradas, excluir essas marcas, de um passado, do presente, limpeza corpórea. Ah Antunes filho talentosíssimo, ah joana´darc expressionismo, Ah Bach grande Bach! Maria Callas alma, Bergman silêncio! Livros, poemas, nossa querida e transformada biblioteca, Pessoas e suas historias de vida, Criações, criadores, Criaturas, ”Montrinhos”. Foram 6 meses pra ser mais exata, de trabalho, dedicação, de aprender a ser humano e agir como um, ver através de um olhar, através do delicado, dedicado, sentido, de usar a naturalidade como o natural para mostrar uma verdade, dita, não dita, sentida, não percebida, encontrada, Foram e são muitos passos ainda a serem dados, em que ser aluno era também ser orientador e orientador era ser aluno sem diferenças sem limite para o novo e para a descoberta do novo, onde todos sentiam como é, como fica, como toca, o que sente, o que liberta.”
(Talita Guidio)

“Ver o universo, olhar o mundo, observar pessoas, ouvir humanos, respirar, inspirar, sentir alguma coisa.
De tudo que nos ocorre a cada dia, a cada momento, que talvez mude ou talvez não e nos faça pensar, pensar em cada momento ou em momento algum. Aos círculos que nos cercam até desfazermos aos poucos e nos reconstituindo em nós mesmos. Então temos um conjunto de coisas, coisas estranhas, insignificantes, incompletas, gerando dúvidas, o que são estas coisas? Para que servem? O que são coisas?
O universo como linear se recompõe em si, continua em expansão, se recria a cada momento.
Então elas respiram. Este respirar para um essencial. Este espirar para um começo.
Foi posta uma mesa de experiências/informações que nos foi dada para escolhermos com qual querem nos cortar, então pegamos espadas, machados, guilhotinas! Mas ai a música toca, suavemente/brutamente, e fecha as feridas e deixa somente as marcas”.
(Gabriel Andriola)


“O TEXTO É PRETEXTO PARA O SUBTEXTO! É brilhante como ocorre a cena, as falas  ‘não faladas’ que acabam existindo dentro da nossa cabeça, não é preciso dizer para se fazer entendido mas apenas estar, ser e querer!
Para finalizar deixarei a minha impressão da nossa roda final, nenhum entusiasmo e teve momentos em que o silêncio imperou, esteve mais nítido do que nunca, que existe medo dentro da gente, medo de falar, de ser ouvido, de ver, de ser visto, enfim de estar aqui. Me indaguei!!! EU CAMINHEI, EU RESPIREI, EU DESEQUILIBREI, EU FIZ EXPRESSÕES, SENTI A DENSIDADE DO AR, ATÉ ‘ENLOUQUECI’, GRITEI, RI ALTO, CORRÍ NESTAS MADEIRAS! Tudo para receber a arte dentro de mim, tudo para que ela se apresentasse para mim, como um eu disponível, um eu que transmite. O que nos motivou a vir aqui foi estar sobre estas madeiras, Atuando. Mas nos foi dado muito mais que isso, nos foram dadas as ferramentas para a construção de nós mesmos e agora temos medo de fazer algo de nós”.
(Priscila Gonçalves)



“Uma proposta simples, entrevistar alguém, ouvir uma pessoa contar sobre seus medos, suas alegrias, suas experiências de vida. Nada mais simples que isso. Parar e ouvir alguém. Justamente nesta simplicidade estava, na minha opinião, o coração daquele processo que o Hércules orientava. Em algum encontro agente falou sobre, espada, corte, feridas. Fui cortado. Jamais serei o mesmo depois deste processo. Fazer as cenas como recortes da vida que nós mesmos não paramos para observar, a experiência de ser o criador de minha própria obra, de me sensibilizar com o cotidiano e ver ou transformar isso em poesia, o simples e rico ato de ouvir o outro é algo que ninguém, jamais vai me tirar, é pra toda minha vida.  Já pensou se eu tivesse desistido?
Durante todo o processo a gente passou por Callas, butô, fomos do Expressionismo ao Impressionismo, trabalhamos com respiração, ar, movimento, falamos sobre história, filosofia, etimologia, religião, música, artes plásticas, Bach, discutimos a respeito de Unvelt, campo tácito, metafisica. Erramos, acertamos, choramos, rimos, nos sensibilizamos, fizemos amizades, tivemos despedidas, mas o que importa mesmo é a experiência, a vivência de tudo isso e como artistas – criadores que agora somos encarar cada uma dessas coisas como parte de nossas obras”.
(Romário Lopes)


“Sobre a Educação da Sensibilidade,
Não teria um nome específico para definir, mas vamos chamar de uma peça. Ao decorrer do ano fomos montando recortes/cenas tentando no mais íntimo de nós, dar um ar de realidade aos nossos movimentos, falas, ações e até mesmo pensamentos.
Nossas cenas também surgiram através de conflitos, incômodos, questionamentos e aflições, que nos causaram uma metamorfose silenciosa. Podemos dizer que tivemos uma overdose de informações, conversas complexas e profundas, que no mais íntimo de cada um de nós, nos transformou de certa forma. A vida está ai, não para, o tempo passa e a história vai acontecendo, pessoas nascem e morrem, deixam exemplos, esperanças, perspectivas diferentes do mundo. Abrimos uma pequena fenda no espaço, para poder ver as coisas que talvez não víamos antes. Eis ai a dança dos planetas, cada um com seu movimento, acrescentando a cada instante. Abrimos os olhos, mas podemos enxergar com eles fechados e a poesia continuará viva.
Ótimo! Palavras e mais palavras foram soltas pelo ar, pelo tempo, que no silêncio se transformam em músicas, poesias e livros. Concretiza o não dito pelo dito, intensifica aquilo dentro de nos, os sentimentos que são um só sentir, das nossas emoções e das nossas sensações. Sem mais, flutuamos juntos em uma atmosfera, prontos para uma única viagem sem volta, que pode ser a ida para algo mais complexo, mais profundo, onde não há fendas para escapar.
(Ana Ítala)


“Em um circulo de idéias e incômodos, circulo de pensamentos homogêneos -Circulo dentro de quadrados, quadrados dentro de teatro, teatro dentro de nós- nós (As feras) dotados de sentimentos, fulgidos, sentimentos controlados, iniciamos uma nova vida, pois cada vez que saímos daquela caixa preta saímos outros, tantos, OUTROS.
Engraçado! Nada é como era antes, ouvir sobre o nosso processo é falar de experiências passadas, marcas não físicas, marcas metafísicas, profundas e infeccionadas, marcas contagiosas. Quem é melhor para falar sobre um corte, do que a própria faca/espada, ela rompeu cada micro fibra da nossa pele, cada músculo do nosso corpo, cada órgão do nosso organismo. O conjunto de letras, palavras, frases iam delineando da morte para a vida, falando do processo em que se foi criando vários “monstrinhos”, as acusações verberantes vieram da faca/espada, do ser responsável pela morte e pelo parto. Ser este que todo soltinho brincava com as palavras, escrevendo com navalhas em minhas costas.
O texto será publicado então morrerá, mas com a metamorfose silenciosa ele já não será mais nosso e sim de um passado distante, pois cada domingo são mais mil’anos que avançamos, sentimentalmente, metafisicamente, fisicamente, literaturgicamente.”
(Elvis Torres)


“Paramos diante do estranho para ouvi-lo. Reconhecemos o que nos chega, não necessariamente como nosso, mas que poderia ser. Essa incerteza quanto a nossa presença no mundo permite que nos aproximemos de tal modo da vida do outro que já não possamos friamente separá-la da nossa.
Ao ficarmos diante da história de um ser humano, consentimos antes de tudo para que a vida se faça; olhamos em seus olhos e deixamos que as memórias, imagens passem ‘entre vistas’. É um momento de apoteose, desses de que a vida é feita e para os quais é preciso que existamos.
Talvez passemos cada um de nós nossas vidas em nossos caminho individuais, buscando entender o todo ou mesmo já desesperançados de achar respostas, quando, como num encontro de notas alta e baixa, criamos um movimento harmônico: notas tão distintas e distantes se encontram e percebem estarem dentro de uma malha maior, um pano não-plano em que as regras aprendidas em vida não necessariamente funcionam ou são precisas, pois sentimos que somos parte de uma obra grandiosa em que nossos corpos tão simples propagam ondas sonoras, cada uma em seu tom, umas de tão mínima frequência, pianinhos, outras quase estrondos, metais pesados – tudo para que se forme o grande coro consonante, de movimentos ora uníssonos ora dissonantes, que seguem-se numa ordem própria e nos levam sempre adiante, a um espaço e tempo desconhecidos que, para que se mantenha a ordem, não nos cabe saber.”
(Rênier Vasconcelos)


ENSAIO GERAL CEU FEITIÇO DA VILA



ENSAIO GERAL CEU FEITIÇO DA VILA – Naloana Lima - 2013 - TEATRO
 
VOCACIONADOS: Estou no equipamento CEU Feitiço da Vila desde 2012. Ano que me deparei com um grupo e duas turmas de adolescentes muito dispostos a embarcar no universo teatral, sem amarras, sem restrições... Vivenciamos diversos experimentos cênicos e eu pude apreciar o desenvolvimento de cada aprendiz. Com as turmas criamos cenas com temas distintos que foram apresentadas nas Ações Culturais ocorridas no CEU Gurapiranga e Cantos do Amanhecer, depois com o processo mais concretizado apresentaram no Festival Vocacional e no CEU Feitiço da Vila.
O grupo “Os que titiram o sono” se dividiu em dois coletivos “Cia Basalto” e “Conectados”, ambos, mesmo após o termino do programa, estabeleceram comigo laços que se seguiram firmes durante as “férias do programa”. Os Conectados ganharam o VAI para produzirem o espetáculo chamado “Sertão Amado” com o texto e musicas criadas pelos vocacionados. Nesse ano de 2013 circularam nos CEUS e apresentaram no Espaço Clariô e agora vão também participar da festa dos 10 anos de VAI que ocorrerá em dezembro na Olido. O Grupo Basalto criou uma micro-peça chamada “Carne Seca não da Sopa” e também apresentaram nos CEU’S e em alguns espaços alternativos além de se apresentaram no Espaço Clariô , dentro do Sarau do Binho no encerramento da V Mostra de Teatro do Gueto. 

CEU FEITIÇO DA VILA: O diálogo dentro do equipamento tem sido árduo desde a antiga gestão, como 2012 foi o meu primeiro ano no programa, observei muito o comportamento dos AO’s das outras linguagens que já estavam no CEU há mais tempo, e via um diálogo conflitante já naquele período, tivemos diversas reuniões que começaram a serem resolvidas no final do ano passado.
No começo do programa em 2013, os mesmos problemas afloraram (pois, como o período de férias é grande, é quase impossível criar um vinculo duradouro dentro do equipamento) e eu depois da experiência vivida ano passado mudei meu comportamento, saí do campo da observação e parti para a ação, na tentativa de minimamente resolver os problemas primários encontrados no equipamento, mas não tive muitas conquistas e senti com mais força a barreira que limita a relação entre a gestão do CEU e o projeto Vocacional, pude ver com clareza o quanto é difícil para o AO isolado com os vocacionados resolver problemas estruturais do equipamento.
A maior “briga” lá dentro era (e é) para que tivéssemos um mínimo de estrutura espacial para as orientações, pois as salas não tem teto, e acabamos por competir de forma desproporcional com o barulho da quadra. O espaço do redondo também é ruim porque as salas são de vidro e a acústica é péssima. O teatro seria a única opção viável, porem nós ficamos a mercê de ter um técnico disponível para acompanhar as atividades. Creio que existe uma má vontade da coordenação do CEU em ceder o Teatro para as orientações do programa, mas isso não é revelado de forma clara, o que vejo é que tudo poderia ser mais tranquilo se houvesse interesse de ambas as partes. 

PROGRAMA VOCACIONAL: Esse ano foi de transformação, e não foi por acaso que ocorram tantas manifestações nas ruas.  Esse movimento ao redor reverberou de forma positiva ao programa, que depois de resistir por diversas fases, hoje se revela muito forte perante aos programas existentes na cidade. Essa potencia do vocacional, se vê na ponta, nas orientações, nos encontros, nas ações culturais, no diálogo político dos vocacionados e tudo isso se desemboca no diálogo ocorrido nas assembleias das segundas-feiras.  Dentro das assembleias foi conquistado um espaço muito importante de debate em que pudemos discutir problemas estruturais relacionados ao programa, no intuito de estabelecer melhores condições de trabalho.  Essa ação se fez necessária e deve ser louvada. 

A EQUIPE: Os reuniões artístico-pedagógicas da equipe sul 2 foram potentes no primeiro semestre. Trocamos experiências que passava pela teoria e pela pratica através de pensamentos, debates filosofias, exibição de vídeos, filmes, leitura de textos, artigos etc. Ocorria uma espécie de um “ensaio artístico pedagógico” de forma colaborativa. Já no segundo semestre as reuniões foram transferidas para a Olido, porém procuramos manter o diálogo antes do começo da assembleia no intuito de manter ativa a discussão artístico-pedagógica da equipe. 

APOIO PSICOLÓGICO: Tive a oportunidade de trabalhar com uma equipe de psicólogos que acompanharam o processo criativo da turma de domingo, observaram muito e depois analisaram cada aprendiz. Para mim foi um prazer ter essa equipe disposta a me acompanhar com a turma, uma psicóloga chamada Tatiane em um trabalho de conclusão de curso, precisavava trabalhar com ua grupo e por conta própria procurou a turma de teatro do CEU Feitiço da Vila, e assim começou, ela se encantou com o coletivo e chamou uma equipe para continuar com ela o trabalho iniciado. Essa equipe foi bem acolhida por todos e proporcionou aos vocacionados uma experiência que talvez eles não tivessem em outro lugar. Muitas vezes eu começava o trabalho e depois a turma seguia com a equipe por fases que ia de questionários a pinturas e no final do processo foi entregue um relatório para cada aprendiz que dizia uma pouco sobre suas inteligências e suas habilidades.  A maioria teve uma inclinação grande para a arte. 

VIVENCIAS ARTISTICO-PEDAGÓGICAS: Existe autonomia sem conhecimento?  Creio que é preciso entender para então questionar, conhecer para se posicionar e fazer escolhas... Quatro longos meses de pausa houve dentro do programa, mas o lado criativo despertado lá atrás com os aprendizes continuou e nesse ano me deparei com diversos questionamentos, que ano passado não havia sido apontado, tais como:
Quem é esse tal de Stanislaviski?
O que é uma quarta parede?
Como faço para elaborar uma gênese?
O que fazemos é teatro de Brecht?
 O que é quebra?
Hum...
Que tal investigar tudo isso?  Mas me diga uma coisa, o que é teatro?  Qual é o seu teatro?  
Qual é a sua Forma e o seu Conteúdo?
E foi assim que começou a brincadeira. Na EXPERIMENTAÇÃO. A construção cênica de cada aprendiz traz elementos que carregam em si, tanto sua memória artística bem como a sua experiência de vida.
Vamos trabalhar temas?
Quais?
Favela, Medo, Romance, Dramaturgia, Tragédia, Comedia, Mitologia, Moradores de Rua...
De que modo?
Depoimentos, Leituras, poesias, contos, vídeos, partitura corporal, partitura vocal, imagens, musicas...
E agora? O que fazer com tudo isso?
Vamos construir um “caderno de bordo” para dar conta de relatar essas experimentações!
E depois? Fazer escolhas?

NA QUEBRADA foi o nome do experimento de domingo que teve o tema da FAVELA. Cada vocacionado escolheu seu personagem e a partir dessa escolha criamos o enredo. Alguns desses personagens nasceram de experimentos vividos em 2012, outros vieram das observados nas ruas e alguns partiram da ficção. Depois a brincadeira foi criar uma narrativa que desse conta da história desses personagens. Muitos problemas dramatúrgicos ocorreram, mas o grupo sustentou até o fim. Subtemas entraram no enredo como: violência domestica, drogas, preconceito racial e religião. E desse caldeirão de ideias criamos cenas que foram apresentadas no final do processo junto com a dança do Jongo. 

O LADO DE CÁ foi o nome do experimento escolhido da turma de quinta, que para nós se tornou uma micropeça com o tema MORADORES DE RUA. Durante o processo criativo assistirmos o filme ESTAMIRA que deu o norte para o experimento. Os personagens surgiram de observações nas ruas, alguns foram alimentados pelo filme e outros foram criados pela imaginação do aprendiz. Criamos também uma musica tema para a peça, um RAP que contava a história dos personagens, a peça atingiu tanto o público que ficou para o bate-papo mais tempo do que o tempo da própria encenação. Conversando com os vocacionados, depois da apresentação, vi que o desejo do coletivo é de continuar com esse processo e apresentar o trabalho em outros lugares. Creio que é bem possível que isso aconteça, tendo em vista que O LADO DE CÁ tem uma amarração dramatúrgica muito consistente, mas sabendo que os vocacionados ainda tem muito que pesquisar.

O corpo, o tempo , mil cruzamentos e a potência criativa - um processo no Campo Limpo


Viviane Dias – CEU Campo Limpo – abril  a novembro de 2013.

 

"A apreensão das significações se faz pelo corpo: aprender a ver as coisas é adquirir um certo estilo de visão, um novo uso do corpo próprio, é enriquecer e reorganizar o
esquema corporal"

(Merleau-Ponty, 1945/1994, p. 212).

 

No corpo, o início. O encontro, o processo, o dia se inicia no corpo. O corpo que traz para o aqui-agora, para a o chão, para o presente, o único momento em que a vida - e a arte - podem ser feitas. O corpo que tem suas marcas, que conta história, que pode se abrir, desabrochar, se transformar, perceber o mundo de uma maneira nova. A percepção é uma atitude corpórea. Merleau-Ponty (1945/1994) identifica a percepção com os movimentos do corpo: a partir de suas vivências e experiências, o corpo gera um  conhecimento sensível do mundo fenomenológico e redimensiona a compreensão de sujeito no processo de conhecimento.

Não é o sujeito epistemológico que efetua a síntese, é o corpo; quando sai de sua dispersão, se ordena, se dirige por todos os meios para um termo único de seu movimento, e quando, pelo fenômeno da sinergia, uma intenção única se concebe nele.

(p. 312)

 

A experiência estética, a arte é capaz de ampliar a possibilidade expressiva de um corpo e reconfigurar sua própria relação com o mundo e percepção do mesmo, agindo sobre os sentidos e sobre a própria linguagem.

 

Nosso encontro , no Teatro Vocacional, no CEU Campo Limpo, só pode começar então a partir da percepção de si mesmo e do corpo, a chamada para a consciência do corpo-terra dentro de cada vocacionado, espaço onde tudo começa, em nossa busca criativa e estética autoral, própria de um sujeito potente e expressivo.

Reconhecimento do espaço que habito, aceitação amorosa deste espaço e configuração de um espaço cada vez mais adequado para a atuação potente em um mundo mutável e flexível. Posso interferir no meu corpo e também no mundo. Abrir espaço dentro e fora.

Técnicas de pilates, alongamento, dança, yoga – a busca é sempre a mesma: espaço interno, abertura, prazer de estar no corpo. Quando se tem prazer de estar em um corpo, a mente e a vontade podem tornar-se também mais presente, capazes de atuar no aqui agora. Um corpo fechado, prisioneiro de couraças, num sentido reichiano, faz com que eu queira estar ... alhures.

 

Uma referência : Michel Tcheckov. As experiências de dilatação e irradiação e o enorme prazer que proporcionaram aos Vocacionados em vivenciaram seu corpo-eu nos levaram a um aprofundamento deste autor. Experimentamos um corpo mais sensível aos estímulos criativos. A busca nunca foi por uma técnica , mas os vocacionados experimentavam uma maior liberdade a partir de vivências inspiradas nas práticas corporais deste pesquisador. Digo inspirados porque acredito que cabe ao artista orientador sempre a possibilidade de criar, modificar, deformar exercícios para seu grupo, a partir de uma base clara e sólida de pesquisa, aliada à sua experiência no palco e com grupos.  M. Tcheckov diz sobre seus exercícios que possibilitam, aos poucos, “sensações de liberdade e de vida mais plena” (Tcheckov, pag. 7) . E também sensações de “calma, estabilidade e conforto psicológico” (pa 12, 13) e  “jubilosa leveza e desenvoltura impregnará todo o seu corpo” (p. 13). Era o que queríamos!

Palavras muito parecidas foram usadas pelos vocacionados nas leituras das experiências. E o corpo foi revelando aos poucos uma outra possibilidade e um novo espaço interno a ser reconhecido. Adolescentes mais organizados corporalmente, corpos mais abertos, mais livres e prontos para o jogo - mesmo maiores - foram se fazendo ao longo dos meses de trabalho continuado.

Outra referência neste trabalho de corpo: W. Reich. O referencial teórico
energético de Reich (SAMPAIO, 2007) é uma energia que circula pelo organismo e que provoca mudanças muito específicas e possíveis de serem observadas. “A percepção, não a imaginação, é a chave de entrada para a coordenação do processo energético”, de acordo com Zeca Sampaio.

 

 

Aqui, um parênteses, necessário! (Energia - como um conceito bastante presente na filosofia e ciências contemporâneas, mas que sofre incrível preconceito por parte de alguns teóricos do teatro, especialmente no Brasil, ligadas a uma linha de teatro materialista – sempre foi uma ideia e um conceito presente em nossos encontros. Ideia difícil de ser evitada num encontro entre pessoas - e ainda mais com propósitos de criação artística - e foi material de fácil detecção pera os vocacionados e elemento sempre presente em suas descobertas de cenas, de trocas, de poesia. Corpo e energia, dois conceitos absolutamente ligados. Energia da troca, da referência, da cena, da peça. Um tabu, no teatro?  Mesmo que filósofos em toda a história da humanidade já falassem sobre energia, desde os gregos a Nietzche  ,” utilizando muitas vezes também a palavra potência”, por exemplo, de acordo com Jurij Alschitz.  Bergson dá o título a uma obra “A energia espiritual”...e a própria ciência, através de Eisenstein, que há mais de um século diz que energia e matéria são interfaces de uma mesma realidade. As artes e, particularmente o teatro, aqueles que trazem o porvir humano e devem olhar longe, ser revolucionários, abrirem possibilidades não imaginadas e novas , estão atrás da ciência quando tem pudores e resistências em usar possibilidades já abertas pela ciência há mais de um século e pela filosofia desde sempre.

( Entre os teóricos do teatro, especialmente estrangeiros, temos M. Chekhóv, Artaud, Grotowski, Barba, Jurij Alschitz que discorrem sobre o tema em suas obras. )

Arrabal  , em entrevista, diz:

A ciência de hoje fala do princípio de indeterminação – “ a mecânica quântica é o teatro de hoje. Mas o teatro de hoje não a compreende. É genial, muito inteligente, mas não compreende, só compreende que o tempo é relativo, mas é muito simples, todos sabem. Todos que amaram uma mulher ou um homem sabem que o tempo não existe. Quem leu Kant, quem leu Platão sabem que o tempo não existe EVIDENTEMENTE. E dizem sim, o tempo é relativo, mas não e possível que o espaço seja relativo, que a matéria seja relativa. Mas nós homens de teatro sabemos que o tempo é relativo, que o espaço e relativo, a matéria é relativa que há uma indeterminação forçosa.)

 

 
Ao conversarmos sobre as couraças e, especialmente a partir da experiência do próprio corpo e percepção do corpo do outro mais aberto e potente , os participantes começaram a ter curiosidade sobre a oba de Reich. E “Escute Zé Ninguém” se tornou uma de nossas maiores fontes de inspiração em uma das turmas para o nosso próprio voo artístico. Uma inspiração via texto lido, mas também via incríveis ilustrações de William Steig, da edição da Martins Fontes.

“Um cientista cria seus modelos enquanto ouve ou toca Mozart ( Einstein); um compositor elabora suas mais belas partituras depois de ler poemas (Debussy) ou liturgias ( Bach) : chamamos isso de inspiração, outro nome para certa forma de proliferação nooética.” Marc Halevy

Material de deformação – nossa base antropofágica e criativa

Pinturas, fotos, ilustrações, poesias, músicas, quadrinhos, contos, filmes, em nossos encontros um banquete a ser devorado antropofagicamente e sem pretensões. Para deleite e que provocaram deleite. Assim, Reich  - texto e ilustração - é um dos nossos materiais de deformação. Mas também trabalhamos e muito com imagens, imagens, imagens. Mergulhamos na leitura de quadros, na abertura de suas imagens poéticas, em nossos próprios devaneios a partir de cada imagem.

Para o antropólogo Gilbert  Durand, as imagens, por sua ambiguidade constitutiva,  exercitam os hormônios do imaginário ( expressão que empresta de Bachelard). As conversas das turmas neste momento se aprofundaram, tornaram-se mais consistentes, diversificadas. As amizades, os laços entre os participantes e com o trabalho também se estreitaram. E o próprio ambiente se tornou mais propício à criação. Georg Simmel escreve que o indivíduo torna-se tão ele próprio quanto mais engloba traços de universalidade compartilhados com outros e quanto mais alarga o leque de combinações possíveis...

Mas não vivemos numa sociedade de imagens? Durand é categórico: vivemos uma época do pensamento sem imagens, fruto de sequelas pedagógicas de nossa educação que valoriza mais o conceito e a percepção em detrimento da imaginação. Enquanto isso ocorre na escola, a sociedade dissemina imagens veiculadas de forma massiva, insistente, desordenada, “imagens em conserva”  naquilo que Durand chamou de “pedagogia selvagem”  (Durand, 1985b). “Nesse sentido o que termos hoje é mito mais uma “civilização de consumo de imagens” (Durand, 1969) do que propriamente uma civilização de imagens” (Araújo e Teixeira; p. 81) .

“Decorre ainda de completar a educação fantástica de uma pedagogia do imaginário que venha em auxílio da carência de “metáforas vivas” (Paul Ricoeur) experenciada por uma humanidade enfeitiçada pelo magma ou exame de imagens desencarnadas provenientes de uma iconosfera pós-moderna.

Material para ser deformado criativamente - ideia que dialoga com uma pedagogia do imaginária não diretiva, via apresentação de imagens - que tem uma ambiguidade constitutiva e escapa à lógica binária de certo e errado, bom ou mal e contribuem para criar o que Gaston Bachelard chama de “poética do devaneio”. Quando falamos de referências, falamos também do oferecimento de material diversificado, de uma pedagogia que oferece uma serie de possibilidades para que as escolhas possam ser feitas. A pedagogia do imaginário é não impositiva.

A partir da experiência de abertura de imagens e energização criativa a partir do material de deformação, partíamos sempre para nosso próprio trabalho criativo. Qual a criação possível, no dia de hoje, no aqui –agora, inspirada por essa obra. Em grupos, exercitando a troca de olhares, a solidariedade, a escuta.

“El artista es la origen de la obra. La obra es el origen del artista.” (Heidegger, em Arte e Poesia)

-Nesta fala de Heidegger, o paradoxo do artista: ele é quem faz a obra, mas a obra também o define como artista. Um artista precisa de uma obra, para ser artista...

E o voo poético-lúdico da turma, sua criação se tornando espelho refletindo uma maior auto-estima e um fator de continuidade.

 

“Até um átomo muda de comportamento quando observado.”

Filmes também foram parte de nosso material de deformação. Importante ressaltar: filmes brasileiros ou dublados, de preferência. Muitos vocacionados, homens e mulheres e jovens, muitas vezes alunos dos últimos anos da escola pública, às vezes senhores que abandonaram a escola há anos, ou não sabem ler ( o que admitem ao artista orientador com muito pudor, o chamando para uma conversa em particular no decorrer do processo, em que a confiança se instaura) ou tem inúmeras e múltiplas dificuldades de leitura... Aliás cabe ressaltar aqui que devido à precariedade da educação nas localidades atendidas pelo Programa Vocacional, o mesmo acaba muitas e muitas vezes sendo uma das poucas alternativas consistentes de um real acesso à uma educação de mais qualidade...tanto para jovens quanto e especialmente para os mais velhos!

Mas filmes e seus modos narrativos ( como Narradores de Javé) e mesmo temas mais amplos, ligados à física quântica, como “Quem somos nós” foram vistos, discutidos em grupo e inspiraram a criação nas turmas. Não podemos deixar de notar e refletir sobre paradoxos da física quântica – e a palavra paradoxo e sua incrível energia criativa foi tema de muitos e muitos de nossos encontros. Os vocacionados se provocavam , inclusive em jogos: “ encontre o paradoxo de...”

 - E se até um átomo muda de comportamento quando observado, o que dizer sobre o ator?

Paradoxo, paradoxo....

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Para Jurij Alschitz, o exercício faz o ator e não o contrário. Assim, experimentamos e experimentamos e experimentamos.

De cumprimentos a exercícios lúdicos que buscávamos abrir  possibilidades criativas, estéticas. Um jogo de cumprimentos abriu sua poesia em cena – a relação ambígua e paradoxal de um casal.

Frida Kahlo e sua obra-vida como material de deformação nos trouxeram o tema da morte e o tempo. A morte como vigia da vida e uma relação bem humorada , inteligente e irônica , numa surpreendente cena criada por uma das turmas ( na maioria jovens na faixa dos 14 aos 21 anos) de uma gravação de um vídeo institucional em que a Morte criava uma espécie de programa de entrevistas macabaro e bem humorado para auxiliar aqueles que passavam por este misterioso momento. Uma cena divertida e altamente filosófica com agudo senso de observação social e poder de crítica, através do riso. Um grande momento no processo – a apropriação criativa, única, de um material de deformação para inspirar um vôo autônomo e potente !

E tivemos mais, e mais e mais. Quadros do Magritte e mitos gregos sendo usados para cenas amplas de navegação em uma sala, um mar e um barquinho com um só remador que vai acumulando seus encontros, como Ulisses, na busca da volta para casa. Mas vivemos num mundo flexível, múltiplo, mutável, de diferentes pontos de vista. E o barco, ao invés de chegar em casa, chega na banheira de uma senhora. Paradoxo....

 O tempo como tema, o tempo como pesquisa, o tempo que se abria e se dilatava. O tempo cronológico se tornou pouco como única apreensão do tempo e a turma, poeticamente e em suas discussões, dialogava com filósofos como Bergson , de maneira simples e despretensiosa, trocando experiências, vivências, histórias de vida.

 E experimentamos, nas criações , o tempo subversivo da duração o tempo bergsoniano  : “múltiplo, elástico, complexo, carente de um ritmo único”. “Contra a consciência diluída e segmentada do tempo cronológico, exteriorizada e dependente das coisas, ocorre reapropriar-se individualmente da existência, redescobrir em nós mesmos a fonte da espontaneidade e da transformação, o ímpeto “floreal”, antimecaniscista. Se na moldura do tempo especializado assiste-se à dissipação do eu e à sua direta subordinação às exigências sociais despersonalizantes, no interior da “duração”, cada um administra e capitaliza o próprio desenvolvimento, provocando uma “avalanche sobre si mesmo”.  (Bodei, 17, 18, citando Bergson)

E provocamos avalanches sobre nós mesmos . Equestionávamos:

Como sair da condição normal da inércia, do empobrecimento frequente e da passividade da consciência? E o hábito nos arrasta?  “A maior parte de nosso tempo vivemos no exterior de nós mesmos, só percebemos do nosso eu um fantasma desbotado,  sombra que a duração pura projeta sobre o espaço homogêneo. A nossa existência desenvolve-se pois,, mais no espaço do que no tempo; vivemos mais no mundo exterior do que para nós; falamos mais do que pensamos; “agem sobre nós” mais do que agimos nós mesmos. Agir livremente é tomar posse de si, é entrar de novo na duração pura.” ( Bergson, Essai sur lés donnés immédiates de la conscience p. 151)

 

Para a turma da tarde, estas histórias de vida e seus cruzamentos com o outro e com diferentes tempos foi tema de seu trabalho poético. Uma turma em que senhoras e jovens de 14 anos conviviam. Um espaço de encontro construído com pluralidade, respeito, escuta.

Um processo belo , potente, plural, flexível. Mas que sofre e muito com sua descontinuidade e em muitos casos falta de estrutura. Descontinuidade – num momento em que se instaura um processo forte e potente o trabalho se interrompe. O Vocacional este ano começou em abril e termina em novembro. Como instaurar um verdadeiro processo artístico pedagógico com a qualidade que os artistas orientadores e coordenadores de equipe e vocacionados criam com interrupções tão grandes? Como instaurar um processo artístico pedagógico continuado com 4 meses de quebra, de ruptura?

“Para mim o Vocacional é primeira necessidade. O teatro abriu minha vida. E agora, que estamos quentes e dentro do processo vamos ter que parar?”, diz Márcia Silva, de 50 anos.

Questionamentos a uma política pública em que a cultura ainda aparece com um orçamento tão menor em relação a outras instâncias que a constituição brasileira assegura aos seus cidadãos ...