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quinta-feira, 28 de novembro de 2013

 I -  ENSAIO  2013 -   Tempo e Artista

Para  começar  esta  escrita  revisitei  meus  ensaios  do  ano  passado  e  eis  que  vejo neles uma  mesma  questão  que faz  parte  do  centro de minhas  inquietações:  O artista  diante  da  realidade.
Não é  todo  artista ou qualquer artista, mas  este  que procura  agir  sobre  a  realidade, neste caso estes  que  estão  no Vocacional  e  a  realidade  é  aquela  para  além  do  já  sabido  e  este  já  sabido  é  para  mim  um  incomodo.
“ em  trânsito , um  dia  a  caminho  de  um  equipamento, nas  avenidas  e  estradas  que  revelam  as  diferenças  sociais  na  geografia  da  cidade  como;  a passagem  de  prédios  bem  acabados  para  pequenas  e  depois  grandes  formações  de “barracos” , casinhas  sem   maquiagem, tijolo  baiano,  precárias, que revelam que o esforço desses  moradores  tem um limite, tijolo  aparente não por  estética mas por limitação,  é  como  a  maquiagem barata dos palhaços  pobres   que  sempre  derretem  e  escorrem  pelo rosto. Mais a frente  a  reprodução de um  modelo  de  sociedade  da  qual  fazemos  parte  todos nós,  pequenos  trechos  comerciais, lojas  e  feiras  de  tudo, novidades  e  quinquilharias,  em  torno  das  quais  se  aglomeram  como  num  formigueiro a  população  local,  logo  depois ... vazio,  nos  equipamentos de cultura para onde vamos,  vazios.  Num  desses  dias  escrevi  em  meu  caderno  de  notas :  a  caminho, ouvindo  Chico  e  observando  a  cara  da  pobreza  na  rua  me  vem  um  velho  pensamento “ estamos  acostumados  demais  em  nosso  olhar  com  a  miséria”,  ou  melhor ,  o  já  sabido  que é  o  efeito  criminoso  da  ação do poder  econômico  através  da  cultura  de  massas,  mas  isto  tem  nos  ajudado  ou  nublado  nosso  olhar  sobre  esta  realidade? “
Dessubjetivação.
Subjetivação.
Penso que  para  gerarmos  processos  que  gerem novas  subjetividades   é  preciso  considerar  que  haja  a  dessubjetivação, o que implica  numa  postura, numa  atitude  deste  artista  diante  das  realidades  que  encontra  em  seu  trabalho.  Entendo  que  por  este  caminho  exercitar  o  olhar  sobre  a  localização  do  sujeito  no  mapa  da  estrutura  social, das  relações  sociais  é  fundamental, porém   o  modo  de  provocar  este  olhar  crítico  tem  várias  formas  de  acordo  com  o universo de cada  artista  e  grupo de  vocacionados,  mas  a  atitude  deve estar  lá,  assim  se  mantém  presente  este  espírito  de  observação, de  localização , olhar  crítico,  que  aprofunda  nas  experiências  práticas  dos  encontros, passo  a  passo,  a  percepção  da  relação   vida  e   arte .
Interiorização  ,  Crenças  e  Sentimentos .
Recorto  aqui  um  trecho  do  texto “ O que é  um  dispositivo?” de  Giorgio  Agamben,  com o risco de descontextualizá-lo, mas que  me  ajuda  a  organizar  meus  pensamentos  não  tão lúcidos.
“Se positividade é o nome que o  jovem  Hegel dá ao elemento histórico, com toda a sua carga de regras, ritos e instituições  impostas  aos  indivíduos  por um poder  externo,  mas  que  se  torna , por  assim  dizer, interiorizada  nos  sistemas  das  crenças  e  dos  sentimentos, então Foucault,  tomando   emprestado   este  termo ( que se tornará  mais  tarde “dispositivo”) toma posição  em  relação a um problema decisivo, que é também o seu  problema  mais próprio  :   a  relação  entre  os  indivíduos  como  seres  viventes  e  o  elemento  histórico,  entendendo  com  este  termo  o  conjunto  das  instituições, dos processos  de  subjetivação  e  das  regras  em  que  se  concretizam  as  relações  de  poder. O  objetivo último de Foucault não é, porém, como em Hegel, aquele  de   reconciliar  os  dois  elementos. E nem  mesmo o de  enfatizar  o  conflito  entre  estes.   Trata-se  para  ele  antes  de  investigar  os  modos  concretos  em  que  as  positividades ( ou  dispositivos)   atuam  nas  relações, nos  mecanismos  e  nos  “jogos”  de  poder.”
“Investigar  os  modos  concretos em que os dispositivos  atuam...” ( sobre  o  sujeito )  é  uma  proposta  que para  mim  faz  parte  deste  olhar sobre  a  realidade que nos vem,  ou  através  dela,  também  da  atitude  do  artista    sobre o  grupo, o meio  e  sobre  si  mesmo  , e  pede  um  estado  de  atenção.  Penso , porém,  ser  importante , necessário  esse  processo  de  localização  do sujeito  dentro  desses  jogos  de  poder  como  um  instrumento/brinquedo   artístico-pedagógico  dentro  dos  processos  desencadeados  pelos  artistas-orientadores,  talvez  não  na  dimensão  do  conflito  desta  relação:  sujeito -  instituições/dispositivos, ou  talvez  sim, quando  necessário,  mas  sempre  como  um  exercício  de  atenção  sobre  esta  relação,  daí  podem  surgir,  reflexões,  escolhas,  ações.
Aqui cabe um  comentário  sobre  nossa  equipe  de  teatro  sul-2 ,  composta  de  excelentes  artistas-orientadores  que  carregam  consigo,  em  suas  malas  de  brinquedos,  ao  meu  ver  é  claro,  este  estado  de  atenção  que  provoca, cada  um  ao  seu  modo,  esse  olhar  crítico  e  poético  ao  seu  tempo. 
E  para  colocar  em  relação  essas  diversas  experiências  a  equipe  preparou  uma  ação  conjunta,  de  modo  que  artistas  e  vocacionados  possam  olhar  para  e  refletir  sobre  os  processos  em  andamento  ou  em  gestação  e  das  convergências  ou  fricções  ou  negações  que  ali  se  apresentem.
Nesta  ação  coletiva  cada  grupo  de  vocacionados,  grupos  e  turmas  de  um  equipamento  prepara  o  encontro  e  experiências  a  partir  de  seus  processos  para  trocar  com  todos  os  outros. E  a  apreciação  sobre  todos  os  momentos, da  preparação  a  realização do encontro  é  um  modo  de  olhar  para  si  mesmo  e  para  o  coletivo  e  sobre  os  processos  vivenciados.

Paulo  Fabiano
Coordenador Teatro  - Sul 2


II   -   O  MAPA  DA  TERRA  INCÓGNITA  (?)
Ø     Luc Ferry ( Um  Novo Humanismo ).

Numa  mesa  de  café  ( filosófico )  estão  dialogando  Jorge  Forbes , psicanalista, e  Luc  Ferry ,  filósofo,  sobre  a  proposta  deste  para um  Novo  Humanismo. Eu  de  canto, faminto, observava  o  papo.

Para  o  início  do trabalho  com  a  equipe,  com  a  intenção  de  provocar  um  diálogo/processo  entre  nós,  levei  o  vídeo  deste  “café  filosófico”, e deste  encontro  surgiu  a  proposta  das  “reverberações”,  uma  troca  entre  nós  onde  cada  artista  proporia  um  material  de  suas referências   para  impulsionar  as  reflexões  sobre o trabalho.

Mas,  voltando  ao  café.
Este  encontro  entre  estes  dois  pensadores  e  as  questões  levantadas  ali  são  para  mim  muito  caras,  como  um  óculos  para  a  minha  miopia  crônica  sobre  meus  pensamentos por  vezes  intensos  e  desarticulados  (pelo  receio de  ser  por  demais  determinista *).

Eis  algumas  questões :
Jorge  Forbes  introduz  o  diálogo  com  a  seguinte  imagem :  que  neste  nosso  tempo  somos  “desbussolados”,  no  que  diz  respeito a um  pensamento  que  nos  oriente, colocando num contexto histórico  onde  a  orientação no mundo já foi, religiosa, racionalista, desestruturante  e  agora  desbussolados,  uma  afirmação  sobre  o  mundo  hoje , aliás, constante  em outros  pensadores  atuais.

E  de  Luc  Ferry  vem  outras  questões :
“As  pessoas  não  tem  mais  nenhuma  razão  para  ficarem  juntas...”
“A  liderança  vertical  já  não  é  aceita  neste  tempo ( pós-modernidade )”,  referindo-se  especialmente  aos  jovens  na  sua  relação  com  as  instituições, a  escola  por  exemplo.

E  essa  questão  que  tem  desdobramentos  para  mim  muito  importantes.
A  idéia  de  sagrado.
“O sagrado  é  aquilo  pelo que  podemos  nos  sacrificar”
E  neste  tempo  desbussolado  “ não há mais o sacrifício pela  pátria  ou  pela  revolução, nem pela política, nem pela transformação social, nem por Deus.  O  novo  rosto do sagrado  é  um  rosto  humano.”  O  novo humanismo de  Ferry  diz  que  há  sacrifício  sim  por  outro  homem  e  por  amor. O  amor  e  o  sacrifício  são  alinhados  aqui  sobre o exemplo  da  relação pais  e  filhos.


Uma outra  questão  é  a  que  levantam  sobre  a  educação  dentro deste  panorama. E  o  olhar  que  Ferry  lança  sobre  o  assunto ,  creio, nos  diz  respeito  e  colabora  na  reflexão  sobre  nossas  ações, da  equipe quero  dizer.
Eis. Diante  de  um  mundo  do  hiperconsumismo, onde  se  é  seduzido o tempo  todo por  objetos, coisas,   onde  o   sujeito  é  acima  de  tudo  um  consumidor, e  pensando  nas  crianças, alvo  fácil  desses  dispositivos, o que fazer? O que ele propõe é que, não adianta  afastar  a  criança  da  frente  da  TV  ou  do computador, enfim,  mas  que  podemos  oferecer a ela  algo  mais  interessante  e  profundo e neste  ponto  cita  a  mitologia  grega  como  possibilidade  de  provocar  as  percepções  do  receptor  a  conexões  mais  complexas, no  caso  a criança. Esta  é , claro, uma  síntese  da  reflexão  sobre  educação,  feita por ele,  mas  que  aqui  fala  muito  diretamente  a  nossas práticas  e  reflexões.

Os  vocacionados  não  são  crianças,  mas  são  como  elas  e  todos  nós, seres  transformados  em  consumidores, atravessados  o  tempo  todo  por  estes  dispositivos  da  mídia  que  formam  valores, éticas.  Como  por  exemplo  a  ética  rasteira  do  cada  um  por  si.

Especialmente  neste  ponto  vejo  com  apreço  uma  prática  comum  a  nossa  equipe  que  é  a utilização do instrumento/brinquedo  artístico e pedagógico  das  Referências . Cada  artista leva  ao  seu  encontro  referências  do  seu  universo  e  experiências, para  disparar  ou  dialogar  com  o  universo  dos  vocacionados.  Em  alguns  casos  as  referências  são  da  música,  das  artes  plásticas, cinema, literatura dramática ou não.
Como um pai  que  lê histórias da mitologia  grega  a  seus  filhos, por exemplo, guardada  as  devidas  proporções  e  relações,  essa  prática  tem  se  mostrado  bastante  potente  para  enfrentar  o  gigantesco  e  criminoso  processo  de  dessubjetivação  a  que  estamos  expostos  todos  nós,  sendo  necessário , entendo eu,  perceber  as  limitações  de  nossas  ações.


               

Nos  materiais  de  referência  que  tem  sido  trabalhado  pela  equipe  há  conteúdo  potente  para  a  reflexão  sobre  as  nossas  relações  hoje  com  o  hiperconsumismo,  uma forma  de  localização  por  exemplo,   mas  há  também  nesses  materiais  a  apreciação  estética , das  escolhas  formais, o  modo  do  artista  apresentar, organizar  suas  questões . A  reflexão  que  vem  daí  , nas práticas da equipe,  parte  antes  de  uma  experiência  física,  seja  diante  de  vídeos,  como por  exemplo  do  estressado  ilha  das  flores e do silêncioso 1,99,  ou  de  exercícios  de  escuta  musical   ou  de  leitura  de  obras  plásticas.  São procedimentos que tem a capacidade de provocar nossas  percepções,  exercitar os vários  ângulos  do  olhar  sobre  o  objeto,  e  criar  movimento  interno, inquietação. 

Por  esta  perspectiva  posso  fazer  relações  com  a proposta  do pensador  Luc  Ferry  às  práticas da equipe,  não  como  um  caminho  de  acerto,  definitivo,  mas  como  um  modo  de  observar  e  agir  sobre  a  realidade.  Com  este  estado  de  atenção que leva  em conta  a  relação dessubjetivação /  subjetivação.

(E  há  também  este  aspecto  importante,  que  é  preciso  tornar  orgânico  em  nós,  que  cada  vez  mais  algum  projeto ou  vontade  de  transformação  social  passa  mesmo  pelo  corpo  a  corpo. )

E  mais  uma  vez,  ao  modo  talvez  de  um  hiponnemata  em  esboço, cito  Giorgio Agamben  e  seu  texto  “O que  é  um  dispositivo” , como  uma  forma  de  situar  essas  reflexões  em  uma  de  suas  perspectivas  fundamentais ( um  modo  de  olhar  a  realidade ) :

“Recapitulando, temos assim  duas  grandes  classes, os seres  viventes  ( ou  as  substâncias)  e  os  dispositivos.  E, entre os dois, como terceiro,  os  sujeitos.
Chamo  sujeito o que resulta da relação e, por  assim  dizer, do corpo-a-corpo  entre  os  viventes  e  os  dispositivos.”...

“Não  seria provavelmente  errado  definir  a  fase  extrema da consolidação  capitalista que  estamos  vivendo  como  uma  gigantesca  acumulação  e  proliferação  dos  dispositivos. Certamente, desde  que  apareceu  o  homo  sapiens  havia  dispositivos,  mas  dir-se-ia  que  hoje não haveria um só  instante  na  vida  dos  indivíduos  que não  seja  modelado, contaminado  ou  controlado  por  algum  dispositivo.  De  que  modo, então, podemos  fazer  frente  a  esta  situação, qual a  estratégia  que  podemos  seguir  no  nosso  corpo-a-corpo  cotidiano  com  os  dispositivos?  Não  se trata  simplesmente  de  destruí-los, nem, como sugerem  alguns  ingênuos,  de  usá-los  de  modo  justo. “

E  na  sequência  do  seu  texto  o  autor  aponta  uma  possibilidade :  “ Mas  aquilo  que  foi  ritualmente  separado  pode  ser  restituído  pelo  rito  à  esfera  profana.  A  profanação  é  o  contradispositivo  que  restitui  ao  uso  comum  aquilo  que  o  sacrifício  havia  separado  e  dividido.”


E  por  um  outro  ângulo  coloco  aqui   uma outra  reflexão  de  Albert  Camus , para  mim  muito  cara .
Diante  da  questão  da  libertação  da  Argélia, apoiada  por  muitos  intelectuais  franceses, que  em  síntese  significaria  a  autonomia  daquele  povo,  já  meio  francês  inclusive,  sem  as  condições  físicas/econômicas  para  sobreviver ,  Camus  faz  a  crítica  ao  processo  e  daí  vem  esta  reflexão  que  quero  grifar  :
Que o  movimento  de  transformação/ revolução   numa  comunidade  ,  nasce  do  sentimento  de  compaixão, (  que  para  alguns  colegas  hoje  é  um  sentimento   morto )  do  reconhecimento  que  a  minha  dor  o  meu  problema  também  tem  a  ver  com  o  outro, ou  vice-versa,  deste  ponto os  homens  se  organizam  e  buscam  uma  solução.  Porém  nisto  tudo  há  um  risco,  quando  o  movimento  se  agiganta  e  vira  uma  bandeira  política,  se  institucionaliza,  e  assim  passa  a  viver  no  plano  das  idéias  e  longe  da  realidade,  do  sentimento  que  gerou  o  movimento.

Eis  o  perigo, o risco,  institucionalizar  a  força  geradora  da  transformação, da ruptura, da mudança.

Paulo Fabiano
Coordenador Teatro  - Sul  2


 III   -   LADO   B   

NOTÍCIAS  DOS  BRASIS

13    DE  JULHO  ACONTECEU  NO  CEU  FEITIÇO    ENCONTRO  ENTRE  JOVENS  ARTISTAS.

Antes  do  fato  do  encontro/fricção  , quero  compartilhar  trechos  de  uma  trilha  sonora  que me acompanhou  por  dias  em trânsito  pelas  estradas  do Vocacional  e  que  para  mim, para  minha  reflexão  faz  muito  sentido  nos  acompanhar  a  partir  daqui.
Trata-se  do  disco  de  Chico  Buarque -  ParaTodos  e  neste  caso  da  música  com  mesmo  nome:

“ Foi Antonio Brasileiro
   Quem soprou  esta  toada
   Que  cobri  de  redondilhas
                               Pra  seguir  minha  jornada
                               E  com  a  vista  enevoada
                               Ver  o  inferno  e  maravilhas...”
Ver  o  inferno  e  maravilhas  ,  faz  parte  deste  estado,  desta  presença  do  artista,  deste  certo  artista  diante da realidade.

Quando  os  jovens  artistas  vocacionados  do  Feitiço da Vila  me  procuraram  para  falar  de  sua  intenção  de  criarem  uma  ação de ocupação artística  naquele  CEU  e  fazer  isto  junto  com os jovens  do Movimento Cruk  de Paraisópolis, onde atuei,  me  enchi  de  ânimo  e  começamos  então  as  articulações  e  por  fim  estavam  todos  lá  no  dia  13 de Julho. Fez-se o cortejo, as performances  se  seguiram  ocupando vários  espaços  do equipamento,  algumas  mais  elaboradas  e  outras  em  construção,  e  chegou-se  por  fim  às  apresentações  dentro do teatro, destinado mais para a dança e  para o bate-papo final.  Ali dançaram,  uma  jovem aprendiz  de  Ballet  Clássico, num  solo,  o trio encabeçabo pelo Rafael  de Paraisópolis, dança Pop  e  os  dançarinos  de  Dança  de  Rua  ligados  ao  Hip  Hop.
Do  momento  do  bate-papo,   podemos  observar  a  dificuldade de elaboração  da fala,   da organização  das  percepções  de momentos  tão intensos,  a organização  e  elaboração de seu discurso, um  conflito interno externo  sobre  o  quanto  aquela  ação  moveu  aqueles  jovens.  Destaco  especialmente, e tento  reproduzir  aqui    a  perplexidade  e  maravilhamento de um  jovem dançarino de rua  quando  viu  e  depois  tentou  falar  sobre  o  trio  de  dança  Pop  do Rafael : “ Nossa  cara... meu...  apesar  de  ser  essa  dança  ai...  de  vocês  serem... ( gays )  eu  preciso  dizer...  vocês  dançam  demais  cara, é  demais...”
E  o  papo  correu,  e  reações  como  esta  nos  levaram  a  tocar  em  pontos  preciosos  de  nossas  existências  ali  nesses  momentos,  como  a  quebra  dessas  fronteiras  invisíveis  e   a  força  que  a  arte  tem para  demoli-las,  assim  como  suas  ideias,  sua  criação  e  a  reflexão  sobre  elas  se  potencializam  numa  ação  junto  com  outros  jovens  criadores.
  Outras  questões  reverberam  dali  como  a  relação  desses  jovens  com  o  espaço  público.


Mesmo  no  tempo do diálogo, que  língua  falar  com  os  novos  gestores  desses  equipamentos,  Coordenadores de Cultura que enxergam  no  movimento  fluído e em fluxo de um encontro como este  a  falta de organização, falta  de “profissionalismo”  e  propõe  organizar  o  “bloco” ? :  para  este  caso uma  resposta  possível  seria “... não traz  lema  nem  divisa, que agente  não precisa que organizem nosso  carnaval...”

Afirmo  que,  quando o terreno é propício,  provocar  a  geração  de  ações  é  muito  importante  para  o processo  criativo  e  emancipatório.  Defendo  esta  ferramenta/brinquedo  dentro  do  nosso  jogo  de  relações  no  vocacional  pela  sua  potência  em  atravessamentos, em  movimento  interno, em  conscientização,  em  experiência  física/estética.
Mas  acrescento  a  importância  do  “como”  fazer, para não  se  criar  a  ilusão  do  gesto,  mas  ao  contrário  estimular    o  aparecimento  do  gesto.   Escolhas  conscientes.

Das  reflexões  em  nossa  equipe  sobre  esta  Ação  dos  jovens  artistas  no  Feitiço  e  mesmo em encontros posteriores,  transitam  ainda  em  minha  cabeça  já um  pouco  gasta, algumas  falas que podem  parecer óbvias  mas  são  mesmo  profundas:
“... quanto as fronteiras invisíveis...  é  isso... é  a arte  mesmo,  é  a  força  do  fazer  artístico  que pode  transformar isto...”
                                Associo  aqui  para  não  se  perder;  fronteiras  invisíveis  -  necessidade   de  sobrevivência  -  identidade/gueto  -  sobrevivência -  Dispositivos  -  Dessubjetivações -  aceitação  -  sobrevivência ...

“ Cada  vez  mais  entendo  que  a  coisa  ( o trabalho,  a transformação... )  se  dá  aqui  no  pequeno,  no  Tetê-a-tetê... “

Cabe  aqui  ouvirmos  mais  um  trecho  de  ParaTodos :

Nessas  tortuosas  trilhas
A  viola  me  redime
Creia, ilustre  cavalheiro
Contra  fel,  moléstia,  crime
Use  Dorival  Caymmi
Vá  de  Jackson  do  Pandeiro
                       
                                          Vi cidades ,  vi  dinheiro
                                          Bandoleiros, vi  hospícios
                                          Moças  feito  passarinho
                                          Avoando  de  edifícios
                                          Fume Ari, cheire  Vinícius
                                          Beba  Nelson  Cavaquinho




Para  não  parecer  uma  redução,  uma  facilitação  este  acento  sobre  a  potência  transformadora  da  experiência  estética,  da  experiência  da  arte,   creio   necessário  grifar  a  importância  deste  “como”  propor,  agir,  estar.  Este  “como”  , entendo eu, pressupõe  um  artista  com  este  estado  de  atenção  e   de agir  sobre  esta  realidade que lhe  chega  através  dos  equipamentos  e  vocacionados :   a presença  da  macro-estrutura  , do pensamento do poder dominante,  da  cultura  de  massas,  das  opressões  sociais...

Para  além  das  falas  e  posturas, por  vezes  moldadas  criminosamente  pelo  sonho  de  consumo,  pelo  senso comum,  pela  interiorização  de  dogmas  religiosos,  morais,  habita  ali  em  algum  corpo  uma  história  riquíssima,  um  canto  a  muito  esquecido,  um  adolescente  olhar  agudo  e  poético  sobre  a  vida  se  formando,  uma  poesia   que  veio do  olhar-se,  tocar-se, ser  tocado,  cabelo  crespo,  minha  condição  social.

O ‘como”  tocar  neste  ser  que  ali  habita  é  matéria   de  muito  trabalho, de  investigação, de postura.

O trabalho  segue  adiante, eu  sigo  em  trânsito, no  trânsito,  nessas  estradas  vendo  inferno  e  maravilhas;  numa  a  senhorinha  que  dança  de  micro-saia  e  bustiê  em  frente  a  uma  loja  em  meio a feira,  noutra  a  loira  falsa balançando sem graça  a  coreografia  do  Faustão  distribuindo  panfletos,  solitária,  lutam para sobreviver ;  noutra  num  canto  sujo de praça  final  de  feira  barulhenta  uma  roda  de  choro  sofisticada,  futebol  de  várzea,  a  vida  seguindo  adiante  e  em  nossos  encontros  a  possibilidade  da  poesia.

Da  dureza  da  constante  e  necessária  resistência  às  instituições,  aos  dispositivos  de  controle, da  necessária  reflexão  sobre  nossas  relações  com  elas,  do  teatro  com  o  Estado  por  exemplo,  fui  transitando  para  algo  mais  poético  onde  está, na  sua  maior  parte  acredito,  nossa  vida.  É  parte  da  experiência  de  um  corpo  nesse  processo  atravessado  por  todos  esses  lados  das  relações.  Um  corpo  com  sede  do  poético.  Construi  mentalmente  a  imagem  que  se  segue  para  esse  momento  que  vivemos  juntos na equipe do Vocacional Teatro :

“Um  encontro/choque/carícia    entre  um  Artista  e  seu  universo, suas  referências ,  experiências, calos, loucuras  e  o  universo  do  sujeito  em  busca de... “

Tempo e Artista
Chico Buarque / 1993

Imagino o artista num  anfiteatro
Onde o tempo é a grande  estrela
Vejo o tempo obrar  sua  arte
Tendo  o  mesmo artista  como tela




Modelando o artista ao seu  feitio
O tempo, com  seu lápis  impreciso
Põe-lhe  rugas  ao  redor  da  boca
Como  contrapesos  de  um  sorriso

Já  vestindo  a  pele  do  artista
O tempo  arrebata-lhe  a  garganta
O velho  cantor  subindo  ao  palco
Apenas  abre  a  voz, e o tempo  canta

Dança  o tempo  sem  cessar, montando
O dorso do exausto bailarino
Trêmulo, o ator recita  um  drama
Que  ainda  está  por  ser  escrito

No anfiteatro, sob o céu de estrela
Um concerto eu imagino
Onde, num relance, o tempo
Alcance a glória
E o artista o infinito


Parei  pra pensar,  o  que  será  que  o  tempo  está  cochichando  nas  orelhas  dos  queridos  companheiros ?





















Reflexão  tardia


Em  busca  de...  Depois  de  mais  de  um  ano  organizados  em  assembleias,  reuniões  com  vereadores,  apoiadores,  chafurdando  em  leis  e  nos  intestinos  da  velha máquina,  ouvi  essa  expressão  mais de uma  vez, lá  nos  intestinos, é  mesmo  uma  imagem  significativa, enfim...  quando paramos  para  pensar  sobre o que estamos  fazendo  vemos um grande  esforço,  repetitivo  a  séculos,  para  poucas, mas também  significativas  conquistas,  mas  sempre  poucas, o que significa  que  logo  mais, na próxima  rodada, na próxima  gestão, no próximo  governo,  lá  estaremos  novamente .   “Quando penso no futuro, não esqueço do passado, ohhh!!” Paulinho da Viola.  Salve  Mário de Andrade  nessa  corrente.  Mas  enfim, final de   2013  e  estamos  lá  na Câmara  novamente, verba  para  o   orçamento da  Cultura   e  aqui  a  questão  que  grita  seu  grito  mudo: a  velha  relação  do  estado  com  o  Artista, ou  com  a  Arte,  que  não  muda, que  não  quer  mudar  e   que  enquadra  a  arte  em  contratos  de  licitação,  em  projetos  com  resultados  pré-estabelecidos,  em  formatos  justificados  científicamente... 

Isto é o que  temos  vivenciado; o  difícil  caminho  ao  entendimento.  Porque  é  tão  difícil  aceitar  que  o  risco  de  um  processo  de  criação  é  também  sua  potência,  e  no  caso  do  Vocacional  também ?  

Em  uma  outra  relação  possível  com  o  artista, ou  a  arte,  será  preciso  aceitar o  risco, o inacabado,  mas  para  isto, para  essa  mudança, é  preciso  coragem  e  disposição,  algo  que  a  velha  máquina  não tem, o que ela  tem ? Sistemas  de  adaptação.

Para  lembrar, talvez  errôneamente , o  sussurro  de  outro  grande  artista, Guimarães  Rosa:
“... mire veja, o homem  não   é  acabado,  e  isso  é  que  é  bonito...”,  algo  assim.




Paulo  Fabiano

Coordenador  Teatro  -  Sul 2

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