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sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Discurso e Experiência - uma carta

Discurso e Experiência

Uso a palavra para compor meus silêncios.
Não gosto das palavras
Fatigadas de informar.
Dou mais respeito
Às que vivem de barriga no chão
Tipo água pedra sapo.
Entendo bem o sotaque das águas.
Dou respeito às coisas desimportantes
E aos seres desimportantes.
Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
Das tartarugas mais do que a dos mísseis.
Tenho em mim esse atraso de nascença.
Eu fui aparelhado
Para gostar de passarinhos.
Tenho abundância de ser feliz por isso.
Meu quintal é maior do que o mundo.
Sou um apanhador de desperdícios:
Amo os restos
Como as boas moscas.
Queria que a minha voz tivesse um formato de canto.
Porque eu não sou da informática:
eu sou da invencionática.
Só uso a palavra para compor meus silêncios.
O apanhador de desperdícios. Manoel de Barros

Não sei como começar, então começo assim meio que falando mesmo, como em uma carta, ou em uma conversa na mesa de um bar na tentativa de evitar o academicismo criticado no ensaio anterior da equipe.
Tenho quase certeza de que não manterei a coerência. Este ensaio está fadado à incoerência.
Acho que me senti lendo seu ensaio como você se sentiu lendo o material norteador. Me senti oprimida. Eu não queria falar sobre isso, mas é este aspecto que grita para mim. Optei por ser bem direta neste texto porque sinto que jogamos (coloco os meus dois pés aqui) palavras, perguntas e ideias que deixam margem para muitas interpretações e, às vezes, contribuem para a criação de mais brumas na reflexão.
Sei que não vou conseguir colocar as palavras como gostaria, talvez eu pareça mais agressiva do que gostaria e peço ajuda de todos para que esta discussão não enverede pelo pequeno e supérfluo que polemiza para satisfazer o próprio ego. Espero que ela abra espaço para reais aprofundamentos da relação teoria e prática e do papel de um programa como o Vocacional numa cidade como São Paulo.
Quando você diz que o discurso político-artístico-pedagógico que emana do material Norteador é subsumido e não-declarado queria entender melhor. O que o material norteador esconde que eu tenho dificuldade de perceber? De verdade. Percebo entre nós e no Material Norteador uma voz contra o pragmatismo na educação, na arte e na vida, percebo uma voz a favor da escuta e do processo. Queria entender melhor quando você diz que a incompletude de posicionamento desse material dá margem para que os artistas-orientadores e coordenadores fundem suas próprias leis. Poxa, este material é fruto de uma resposta mais coletiva a alguns anos bem estranhos em que os artistas-orientadores não se sentiam representados, e em muitos casos eram perseguidos por uma postura “mão de ferro” oposta aos princípios que fundaram o projeto. Não acho que tudo está lindo e maravilhoso agora (nunca estará), mas ao invés de desmerecer o esforço feito até aqui para aprofundar o entendimento da nossa ação, me interessa mais olhar o passado, tentar compreender os passos que nos fizeram chegar até aqui e pensar/propor o presente. Na sua opinião, qual seria um posicionamento mais certeiro? O que ele baniria? O que ele abraçaria?
Sobre as terminologias, me pergunto se o material norteador e nós não caímos no risco que faz parte do discurso na contemporaneidade. A construção do discurso do pensamento (acadêmico principalmente) é vasto, complexo e muitas vezes contraditório. Recortar termos descontextualizados é um grande perigo, assim como questioná-los com o filtro de outras linhas de argumentação. Vira um tiroteio entre cegos.
Do encontro entre as suas colocações e eu fica o desejo de investigar os desencontros entre a experiência (a cena que nasce; o que se sente quando vejo/faço um gesto teatral; o reconhecimento silencioso de todos da potência de uma imagem cênica, de uma ação teatral) e o discurso da experiência (como escrevo, a partir de quais pressupostos teóricos e - sim - acadêmicos; como contamos para nós mesmos os princípios nos quais acreditamos e atuamos).
Norteador me parece o melhor termo até agora. Diferente de fundamentos, princípios, guia, norteador me leva a Norte que me leva a estrelas, que pressupõe o homem que olha as estrelas para se orientar, mas que considera as condições que percebe na terra e que considera sua própria experiência para poder agir.  Lendo este último documento produzido na história deste projeto de ação na cidade, dar autonomia às pessoas é no mínimo coerente. Se outros termos aparecerem e forem mais coerentes e potentes, adotarei não como repetição burra, mas como insuflador de novas perspectivas sobre a minha ação. 

Não entendo. Isso é tão vasto que ultrapassa qualquer entender. Entender é sempre limitado. Mas não entender pode não ter fronteiras. Sinto que sou muito mais completa quando não entendo. Não entender, do modo como falo, é um dom. Não entender, mas não como um simples de espírito. O bom é ser inteligente e não entender. É uma benção estranha, como ter loucura sem ser doida. É um desinteresse manso, é uma doçura de burrice. Só que de vez em quando vem a inquietação: quero entender um pouco. Não demais: mas pelo menos entender que não entendo.  (CL)

Marina Corazza
Artista-orientadora CEU São Rafael

Junho de 2013

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