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sábado, 30 de novembro de 2013

O corpo, o tempo , mil cruzamentos e a potência criativa - um processo no Campo Limpo


Viviane Dias – CEU Campo Limpo – abril  a novembro de 2013.

 

"A apreensão das significações se faz pelo corpo: aprender a ver as coisas é adquirir um certo estilo de visão, um novo uso do corpo próprio, é enriquecer e reorganizar o
esquema corporal"

(Merleau-Ponty, 1945/1994, p. 212).

 

No corpo, o início. O encontro, o processo, o dia se inicia no corpo. O corpo que traz para o aqui-agora, para a o chão, para o presente, o único momento em que a vida - e a arte - podem ser feitas. O corpo que tem suas marcas, que conta história, que pode se abrir, desabrochar, se transformar, perceber o mundo de uma maneira nova. A percepção é uma atitude corpórea. Merleau-Ponty (1945/1994) identifica a percepção com os movimentos do corpo: a partir de suas vivências e experiências, o corpo gera um  conhecimento sensível do mundo fenomenológico e redimensiona a compreensão de sujeito no processo de conhecimento.

Não é o sujeito epistemológico que efetua a síntese, é o corpo; quando sai de sua dispersão, se ordena, se dirige por todos os meios para um termo único de seu movimento, e quando, pelo fenômeno da sinergia, uma intenção única se concebe nele.

(p. 312)

 

A experiência estética, a arte é capaz de ampliar a possibilidade expressiva de um corpo e reconfigurar sua própria relação com o mundo e percepção do mesmo, agindo sobre os sentidos e sobre a própria linguagem.

 

Nosso encontro , no Teatro Vocacional, no CEU Campo Limpo, só pode começar então a partir da percepção de si mesmo e do corpo, a chamada para a consciência do corpo-terra dentro de cada vocacionado, espaço onde tudo começa, em nossa busca criativa e estética autoral, própria de um sujeito potente e expressivo.

Reconhecimento do espaço que habito, aceitação amorosa deste espaço e configuração de um espaço cada vez mais adequado para a atuação potente em um mundo mutável e flexível. Posso interferir no meu corpo e também no mundo. Abrir espaço dentro e fora.

Técnicas de pilates, alongamento, dança, yoga – a busca é sempre a mesma: espaço interno, abertura, prazer de estar no corpo. Quando se tem prazer de estar em um corpo, a mente e a vontade podem tornar-se também mais presente, capazes de atuar no aqui agora. Um corpo fechado, prisioneiro de couraças, num sentido reichiano, faz com que eu queira estar ... alhures.

 

Uma referência : Michel Tcheckov. As experiências de dilatação e irradiação e o enorme prazer que proporcionaram aos Vocacionados em vivenciaram seu corpo-eu nos levaram a um aprofundamento deste autor. Experimentamos um corpo mais sensível aos estímulos criativos. A busca nunca foi por uma técnica , mas os vocacionados experimentavam uma maior liberdade a partir de vivências inspiradas nas práticas corporais deste pesquisador. Digo inspirados porque acredito que cabe ao artista orientador sempre a possibilidade de criar, modificar, deformar exercícios para seu grupo, a partir de uma base clara e sólida de pesquisa, aliada à sua experiência no palco e com grupos.  M. Tcheckov diz sobre seus exercícios que possibilitam, aos poucos, “sensações de liberdade e de vida mais plena” (Tcheckov, pag. 7) . E também sensações de “calma, estabilidade e conforto psicológico” (pa 12, 13) e  “jubilosa leveza e desenvoltura impregnará todo o seu corpo” (p. 13). Era o que queríamos!

Palavras muito parecidas foram usadas pelos vocacionados nas leituras das experiências. E o corpo foi revelando aos poucos uma outra possibilidade e um novo espaço interno a ser reconhecido. Adolescentes mais organizados corporalmente, corpos mais abertos, mais livres e prontos para o jogo - mesmo maiores - foram se fazendo ao longo dos meses de trabalho continuado.

Outra referência neste trabalho de corpo: W. Reich. O referencial teórico
energético de Reich (SAMPAIO, 2007) é uma energia que circula pelo organismo e que provoca mudanças muito específicas e possíveis de serem observadas. “A percepção, não a imaginação, é a chave de entrada para a coordenação do processo energético”, de acordo com Zeca Sampaio.

 

 

Aqui, um parênteses, necessário! (Energia - como um conceito bastante presente na filosofia e ciências contemporâneas, mas que sofre incrível preconceito por parte de alguns teóricos do teatro, especialmente no Brasil, ligadas a uma linha de teatro materialista – sempre foi uma ideia e um conceito presente em nossos encontros. Ideia difícil de ser evitada num encontro entre pessoas - e ainda mais com propósitos de criação artística - e foi material de fácil detecção pera os vocacionados e elemento sempre presente em suas descobertas de cenas, de trocas, de poesia. Corpo e energia, dois conceitos absolutamente ligados. Energia da troca, da referência, da cena, da peça. Um tabu, no teatro?  Mesmo que filósofos em toda a história da humanidade já falassem sobre energia, desde os gregos a Nietzche  ,” utilizando muitas vezes também a palavra potência”, por exemplo, de acordo com Jurij Alschitz.  Bergson dá o título a uma obra “A energia espiritual”...e a própria ciência, através de Eisenstein, que há mais de um século diz que energia e matéria são interfaces de uma mesma realidade. As artes e, particularmente o teatro, aqueles que trazem o porvir humano e devem olhar longe, ser revolucionários, abrirem possibilidades não imaginadas e novas , estão atrás da ciência quando tem pudores e resistências em usar possibilidades já abertas pela ciência há mais de um século e pela filosofia desde sempre.

( Entre os teóricos do teatro, especialmente estrangeiros, temos M. Chekhóv, Artaud, Grotowski, Barba, Jurij Alschitz que discorrem sobre o tema em suas obras. )

Arrabal  , em entrevista, diz:

A ciência de hoje fala do princípio de indeterminação – “ a mecânica quântica é o teatro de hoje. Mas o teatro de hoje não a compreende. É genial, muito inteligente, mas não compreende, só compreende que o tempo é relativo, mas é muito simples, todos sabem. Todos que amaram uma mulher ou um homem sabem que o tempo não existe. Quem leu Kant, quem leu Platão sabem que o tempo não existe EVIDENTEMENTE. E dizem sim, o tempo é relativo, mas não e possível que o espaço seja relativo, que a matéria seja relativa. Mas nós homens de teatro sabemos que o tempo é relativo, que o espaço e relativo, a matéria é relativa que há uma indeterminação forçosa.)

 

 
Ao conversarmos sobre as couraças e, especialmente a partir da experiência do próprio corpo e percepção do corpo do outro mais aberto e potente , os participantes começaram a ter curiosidade sobre a oba de Reich. E “Escute Zé Ninguém” se tornou uma de nossas maiores fontes de inspiração em uma das turmas para o nosso próprio voo artístico. Uma inspiração via texto lido, mas também via incríveis ilustrações de William Steig, da edição da Martins Fontes.

“Um cientista cria seus modelos enquanto ouve ou toca Mozart ( Einstein); um compositor elabora suas mais belas partituras depois de ler poemas (Debussy) ou liturgias ( Bach) : chamamos isso de inspiração, outro nome para certa forma de proliferação nooética.” Marc Halevy

Material de deformação – nossa base antropofágica e criativa

Pinturas, fotos, ilustrações, poesias, músicas, quadrinhos, contos, filmes, em nossos encontros um banquete a ser devorado antropofagicamente e sem pretensões. Para deleite e que provocaram deleite. Assim, Reich  - texto e ilustração - é um dos nossos materiais de deformação. Mas também trabalhamos e muito com imagens, imagens, imagens. Mergulhamos na leitura de quadros, na abertura de suas imagens poéticas, em nossos próprios devaneios a partir de cada imagem.

Para o antropólogo Gilbert  Durand, as imagens, por sua ambiguidade constitutiva,  exercitam os hormônios do imaginário ( expressão que empresta de Bachelard). As conversas das turmas neste momento se aprofundaram, tornaram-se mais consistentes, diversificadas. As amizades, os laços entre os participantes e com o trabalho também se estreitaram. E o próprio ambiente se tornou mais propício à criação. Georg Simmel escreve que o indivíduo torna-se tão ele próprio quanto mais engloba traços de universalidade compartilhados com outros e quanto mais alarga o leque de combinações possíveis...

Mas não vivemos numa sociedade de imagens? Durand é categórico: vivemos uma época do pensamento sem imagens, fruto de sequelas pedagógicas de nossa educação que valoriza mais o conceito e a percepção em detrimento da imaginação. Enquanto isso ocorre na escola, a sociedade dissemina imagens veiculadas de forma massiva, insistente, desordenada, “imagens em conserva”  naquilo que Durand chamou de “pedagogia selvagem”  (Durand, 1985b). “Nesse sentido o que termos hoje é mito mais uma “civilização de consumo de imagens” (Durand, 1969) do que propriamente uma civilização de imagens” (Araújo e Teixeira; p. 81) .

“Decorre ainda de completar a educação fantástica de uma pedagogia do imaginário que venha em auxílio da carência de “metáforas vivas” (Paul Ricoeur) experenciada por uma humanidade enfeitiçada pelo magma ou exame de imagens desencarnadas provenientes de uma iconosfera pós-moderna.

Material para ser deformado criativamente - ideia que dialoga com uma pedagogia do imaginária não diretiva, via apresentação de imagens - que tem uma ambiguidade constitutiva e escapa à lógica binária de certo e errado, bom ou mal e contribuem para criar o que Gaston Bachelard chama de “poética do devaneio”. Quando falamos de referências, falamos também do oferecimento de material diversificado, de uma pedagogia que oferece uma serie de possibilidades para que as escolhas possam ser feitas. A pedagogia do imaginário é não impositiva.

A partir da experiência de abertura de imagens e energização criativa a partir do material de deformação, partíamos sempre para nosso próprio trabalho criativo. Qual a criação possível, no dia de hoje, no aqui –agora, inspirada por essa obra. Em grupos, exercitando a troca de olhares, a solidariedade, a escuta.

“El artista es la origen de la obra. La obra es el origen del artista.” (Heidegger, em Arte e Poesia)

-Nesta fala de Heidegger, o paradoxo do artista: ele é quem faz a obra, mas a obra também o define como artista. Um artista precisa de uma obra, para ser artista...

E o voo poético-lúdico da turma, sua criação se tornando espelho refletindo uma maior auto-estima e um fator de continuidade.

 

“Até um átomo muda de comportamento quando observado.”

Filmes também foram parte de nosso material de deformação. Importante ressaltar: filmes brasileiros ou dublados, de preferência. Muitos vocacionados, homens e mulheres e jovens, muitas vezes alunos dos últimos anos da escola pública, às vezes senhores que abandonaram a escola há anos, ou não sabem ler ( o que admitem ao artista orientador com muito pudor, o chamando para uma conversa em particular no decorrer do processo, em que a confiança se instaura) ou tem inúmeras e múltiplas dificuldades de leitura... Aliás cabe ressaltar aqui que devido à precariedade da educação nas localidades atendidas pelo Programa Vocacional, o mesmo acaba muitas e muitas vezes sendo uma das poucas alternativas consistentes de um real acesso à uma educação de mais qualidade...tanto para jovens quanto e especialmente para os mais velhos!

Mas filmes e seus modos narrativos ( como Narradores de Javé) e mesmo temas mais amplos, ligados à física quântica, como “Quem somos nós” foram vistos, discutidos em grupo e inspiraram a criação nas turmas. Não podemos deixar de notar e refletir sobre paradoxos da física quântica – e a palavra paradoxo e sua incrível energia criativa foi tema de muitos e muitos de nossos encontros. Os vocacionados se provocavam , inclusive em jogos: “ encontre o paradoxo de...”

 - E se até um átomo muda de comportamento quando observado, o que dizer sobre o ator?

Paradoxo, paradoxo....

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Para Jurij Alschitz, o exercício faz o ator e não o contrário. Assim, experimentamos e experimentamos e experimentamos.

De cumprimentos a exercícios lúdicos que buscávamos abrir  possibilidades criativas, estéticas. Um jogo de cumprimentos abriu sua poesia em cena – a relação ambígua e paradoxal de um casal.

Frida Kahlo e sua obra-vida como material de deformação nos trouxeram o tema da morte e o tempo. A morte como vigia da vida e uma relação bem humorada , inteligente e irônica , numa surpreendente cena criada por uma das turmas ( na maioria jovens na faixa dos 14 aos 21 anos) de uma gravação de um vídeo institucional em que a Morte criava uma espécie de programa de entrevistas macabaro e bem humorado para auxiliar aqueles que passavam por este misterioso momento. Uma cena divertida e altamente filosófica com agudo senso de observação social e poder de crítica, através do riso. Um grande momento no processo – a apropriação criativa, única, de um material de deformação para inspirar um vôo autônomo e potente !

E tivemos mais, e mais e mais. Quadros do Magritte e mitos gregos sendo usados para cenas amplas de navegação em uma sala, um mar e um barquinho com um só remador que vai acumulando seus encontros, como Ulisses, na busca da volta para casa. Mas vivemos num mundo flexível, múltiplo, mutável, de diferentes pontos de vista. E o barco, ao invés de chegar em casa, chega na banheira de uma senhora. Paradoxo....

 O tempo como tema, o tempo como pesquisa, o tempo que se abria e se dilatava. O tempo cronológico se tornou pouco como única apreensão do tempo e a turma, poeticamente e em suas discussões, dialogava com filósofos como Bergson , de maneira simples e despretensiosa, trocando experiências, vivências, histórias de vida.

 E experimentamos, nas criações , o tempo subversivo da duração o tempo bergsoniano  : “múltiplo, elástico, complexo, carente de um ritmo único”. “Contra a consciência diluída e segmentada do tempo cronológico, exteriorizada e dependente das coisas, ocorre reapropriar-se individualmente da existência, redescobrir em nós mesmos a fonte da espontaneidade e da transformação, o ímpeto “floreal”, antimecaniscista. Se na moldura do tempo especializado assiste-se à dissipação do eu e à sua direta subordinação às exigências sociais despersonalizantes, no interior da “duração”, cada um administra e capitaliza o próprio desenvolvimento, provocando uma “avalanche sobre si mesmo”.  (Bodei, 17, 18, citando Bergson)

E provocamos avalanches sobre nós mesmos . Equestionávamos:

Como sair da condição normal da inércia, do empobrecimento frequente e da passividade da consciência? E o hábito nos arrasta?  “A maior parte de nosso tempo vivemos no exterior de nós mesmos, só percebemos do nosso eu um fantasma desbotado,  sombra que a duração pura projeta sobre o espaço homogêneo. A nossa existência desenvolve-se pois,, mais no espaço do que no tempo; vivemos mais no mundo exterior do que para nós; falamos mais do que pensamos; “agem sobre nós” mais do que agimos nós mesmos. Agir livremente é tomar posse de si, é entrar de novo na duração pura.” ( Bergson, Essai sur lés donnés immédiates de la conscience p. 151)

 

Para a turma da tarde, estas histórias de vida e seus cruzamentos com o outro e com diferentes tempos foi tema de seu trabalho poético. Uma turma em que senhoras e jovens de 14 anos conviviam. Um espaço de encontro construído com pluralidade, respeito, escuta.

Um processo belo , potente, plural, flexível. Mas que sofre e muito com sua descontinuidade e em muitos casos falta de estrutura. Descontinuidade – num momento em que se instaura um processo forte e potente o trabalho se interrompe. O Vocacional este ano começou em abril e termina em novembro. Como instaurar um verdadeiro processo artístico pedagógico com a qualidade que os artistas orientadores e coordenadores de equipe e vocacionados criam com interrupções tão grandes? Como instaurar um processo artístico pedagógico continuado com 4 meses de quebra, de ruptura?

“Para mim o Vocacional é primeira necessidade. O teatro abriu minha vida. E agora, que estamos quentes e dentro do processo vamos ter que parar?”, diz Márcia Silva, de 50 anos.

Questionamentos a uma política pública em que a cultura ainda aparece com um orçamento tão menor em relação a outras instâncias que a constituição brasileira assegura aos seus cidadãos ...

 

 

 

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