Viviane Dias – CEU Campo Limpo – abril a novembro de 2013.
"A apreensão das significações se faz pelo corpo: aprender a ver as
coisas é adquirir um certo estilo de visão, um novo uso do corpo próprio, é enriquecer e
reorganizar o
esquema corporal"
esquema corporal"
(Merleau-Ponty, 1945/1994, p. 212).
No corpo, o início. O encontro, o processo, o dia se
inicia no corpo. O corpo que traz para o aqui-agora, para a o chão, para o
presente, o único momento em que a vida - e a arte - podem ser feitas. O corpo
que tem suas marcas, que conta história, que pode se abrir, desabrochar, se
transformar, perceber o mundo de uma maneira nova. A percepção é uma atitude corpórea. Merleau-Ponty (1945/1994) identifica a
percepção com os movimentos do corpo: a partir de suas vivências e experiências,
o corpo gera um conhecimento sensível do
mundo fenomenológico e redimensiona a compreensão
de sujeito no processo de conhecimento.
Não é o sujeito epistemológico que efetua a síntese,
é o corpo; quando sai de sua dispersão, se ordena, se dirige por todos os meios
para um termo único de seu movimento, e quando, pelo fenômeno da sinergia, uma
intenção única se concebe nele.
(p. 312)
A experiência
estética, a arte é capaz de ampliar a possibilidade expressiva de um corpo e
reconfigurar sua própria relação com o mundo e percepção do mesmo, agindo sobre
os sentidos e sobre a própria linguagem.
Nosso encontro ,
no Teatro Vocacional, no CEU Campo Limpo,
só pode começar então a partir da percepção de si mesmo e do corpo, a chamada
para a consciência do corpo-terra dentro de cada vocacionado, espaço onde tudo
começa, em nossa busca criativa e
estética autoral, própria de um sujeito potente e expressivo.
Reconhecimento
do espaço que habito, aceitação amorosa deste espaço e configuração de um
espaço cada vez mais adequado para a atuação potente em um mundo mutável e
flexível. Posso interferir no meu corpo e também no mundo. Abrir espaço dentro
e fora.
Técnicas de
pilates, alongamento, dança, yoga – a busca é sempre a mesma: espaço interno,
abertura, prazer de estar no corpo. Quando se tem prazer de estar em um corpo, a
mente e a vontade podem tornar-se também mais presente, capazes de atuar no
aqui agora. Um corpo fechado, prisioneiro de couraças, num sentido reichiano,
faz com que eu queira estar ... alhures.
Uma referência : Michel
Tcheckov. As experiências de dilatação e irradiação e o enorme prazer que
proporcionaram aos Vocacionados em vivenciaram seu corpo-eu nos levaram a um
aprofundamento deste autor. Experimentamos um corpo mais sensível aos estímulos
criativos. A busca nunca foi por uma técnica , mas os vocacionados
experimentavam uma maior liberdade a partir de vivências inspiradas nas
práticas corporais deste pesquisador. Digo inspirados porque acredito que cabe
ao artista orientador sempre a possibilidade de criar, modificar, deformar
exercícios para seu grupo, a partir de uma base clara e sólida de pesquisa,
aliada à sua experiência no palco e com grupos. M. Tcheckov diz sobre seus exercícios que
possibilitam, aos poucos, “sensações de liberdade e de vida mais plena”
(Tcheckov, pag. 7) . E também sensações de “calma, estabilidade e conforto
psicológico” (pa 12, 13) e “jubilosa
leveza e desenvoltura impregnará todo o seu corpo” (p. 13). Era o que
queríamos!
Palavras muito
parecidas foram usadas pelos vocacionados nas leituras das experiências. E o
corpo foi revelando aos poucos uma outra possibilidade e um novo espaço interno
a ser reconhecido. Adolescentes mais organizados corporalmente, corpos mais
abertos, mais livres e prontos para o jogo - mesmo maiores - foram se fazendo
ao longo dos meses de trabalho continuado.
Outra referência
neste trabalho de corpo: W. Reich. O referencial
teórico
energético
de Reich (SAMPAIO, 2007) é uma energia que circula pelo organismo e que provoca
mudanças muito específicas e possíveis de serem observadas. “A percepção, não a
imaginação, é a chave de entrada para a coordenação do processo energético”, de
acordo com Zeca Sampaio.
Aqui, um parênteses, necessário! (Energia
- como um conceito bastante presente na filosofia e ciências contemporâneas,
mas que sofre incrível preconceito por parte de alguns teóricos do teatro,
especialmente no Brasil, ligadas a uma linha de teatro materialista – sempre
foi uma ideia e um conceito presente em nossos encontros. Ideia difícil de ser
evitada num encontro entre pessoas - e ainda mais com propósitos de criação
artística - e foi material de fácil detecção pera os vocacionados e elemento
sempre presente em suas descobertas de cenas, de trocas, de poesia. Corpo e energia, dois conceitos absolutamente
ligados. Energia da troca, da referência, da cena, da peça. Um tabu, no teatro?
Mesmo que filósofos em toda a história
da humanidade já falassem sobre energia, desde os gregos a Nietzche ,” utilizando muitas vezes também a palavra
potência”, por exemplo, de acordo com Jurij Alschitz. Bergson dá o título a uma obra “A energia
espiritual”...e a própria ciência, através de Eisenstein, que há mais de um século
diz que energia e matéria são interfaces de uma mesma realidade. As artes e,
particularmente o teatro, aqueles que trazem o porvir humano e devem olhar
longe, ser revolucionários, abrirem possibilidades não imaginadas e novas , estão
atrás da ciência quando tem pudores e resistências em usar possibilidades já
abertas pela ciência há mais de um século e pela filosofia desde sempre.
( Entre os teóricos do teatro, especialmente
estrangeiros, temos M. Chekhóv, Artaud, Grotowski, Barba, Jurij Alschitz que
discorrem sobre o tema em suas obras. )
Arrabal , em entrevista, diz:
A ciência de hoje fala do princípio de
indeterminação – “ a mecânica quântica é o teatro de hoje. Mas o teatro de hoje
não a compreende. É genial, muito inteligente, mas não compreende, só
compreende que o tempo é relativo, mas é muito simples, todos sabem. Todos que
amaram uma mulher ou um homem sabem que o tempo não existe. Quem leu Kant, quem
leu Platão sabem que o tempo não existe EVIDENTEMENTE. E dizem sim, o tempo é
relativo, mas não e possível que o espaço seja relativo, que a matéria seja
relativa. Mas nós homens de teatro sabemos que o tempo é relativo, que o espaço
e relativo, a matéria é relativa que há uma indeterminação forçosa.)
“Um cientista cria seus modelos enquanto ouve ou
toca Mozart ( Einstein); um compositor elabora suas mais belas partituras
depois de ler poemas (Debussy) ou liturgias ( Bach) : chamamos isso de
inspiração, outro nome para certa forma de proliferação nooética.” Marc Halevy
Material
de deformação – nossa base antropofágica e criativa
Pinturas,
fotos, ilustrações, poesias, músicas, quadrinhos, contos, filmes, em nossos
encontros um banquete a ser devorado antropofagicamente e sem pretensões. Para
deleite e que provocaram deleite. Assim, Reich
- texto e ilustração - é um dos nossos materiais de deformação. Mas
também trabalhamos e muito com imagens, imagens, imagens. Mergulhamos na
leitura de quadros, na abertura de suas imagens poéticas, em nossos próprios
devaneios a partir de cada imagem.
Para o antropólogo Gilbert
Durand, as imagens, por sua ambiguidade
constitutiva, exercitam os hormônios do
imaginário ( expressão que empresta de Bachelard). As conversas das turmas neste momento se aprofundaram,
tornaram-se mais consistentes, diversificadas. As amizades, os laços entre os
participantes e com o trabalho também se estreitaram. E o próprio ambiente se
tornou mais propício à criação. Georg Simmel escreve que o indivíduo
torna-se tão ele próprio quanto mais engloba traços de universalidade
compartilhados com outros e quanto mais alarga o leque de combinações
possíveis...
Mas não vivemos numa sociedade de imagens? Durand é categórico: vivemos
uma época do pensamento sem imagens, fruto de sequelas pedagógicas de nossa
educação que valoriza mais o conceito e a percepção em detrimento da
imaginação. Enquanto isso ocorre na escola, a sociedade dissemina imagens
veiculadas de forma massiva, insistente, desordenada, “imagens em
conserva” naquilo que Durand chamou de
“pedagogia selvagem” (Durand, 1985b). “Nesse
sentido o que termos hoje é mito mais uma “civilização de consumo de imagens”
(Durand, 1969) do que propriamente uma civilização de imagens” (Araújo e
Teixeira; p. 81) .
“Decorre ainda de completar a educação fantástica de uma pedagogia
do imaginário que venha em auxílio da carência de “metáforas vivas” (Paul
Ricoeur) experenciada por uma humanidade enfeitiçada pelo magma ou exame de
imagens desencarnadas provenientes de uma iconosfera pós-moderna.”
Material
para ser deformado criativamente - ideia que dialoga com uma pedagogia do
imaginária não diretiva, via apresentação de imagens - que tem uma ambiguidade constitutiva e escapa à
lógica binária de certo e errado, bom ou mal e contribuem para criar o que
Gaston Bachelard chama de “poética do devaneio”. Quando
falamos de referências, falamos também do oferecimento de material
diversificado, de uma pedagogia que oferece uma serie de possibilidades para
que as escolhas possam ser feitas. A
pedagogia do imaginário é não impositiva.
A partir da
experiência de abertura de imagens e energização criativa a partir do material
de deformação, partíamos sempre para nosso próprio trabalho criativo. Qual a
criação possível, no dia de hoje, no aqui –agora, inspirada por essa obra. Em
grupos, exercitando a troca de olhares, a solidariedade, a escuta.
“El artista es la
origen de la obra. La obra es el origen del artista.” (Heidegger, em Arte e Poesia)
-Nesta fala
de Heidegger, o paradoxo do artista: ele é quem faz a obra, mas a obra também o
define como artista. Um artista precisa de uma obra, para ser artista...
E o voo poético-lúdico da turma, sua criação se tornando
espelho refletindo uma maior auto-estima e um fator de continuidade.
“Até um átomo muda de
comportamento quando observado.”
Filmes também foram
parte de nosso material de deformação. Importante ressaltar: filmes brasileiros
ou dublados, de preferência. Muitos vocacionados, homens e mulheres e jovens,
muitas vezes alunos dos últimos anos da escola pública, às vezes senhores que
abandonaram a escola há anos, ou não sabem ler ( o que admitem ao artista
orientador com muito pudor, o chamando para uma conversa em particular no
decorrer do processo, em que a confiança se instaura) ou tem inúmeras e
múltiplas dificuldades de leitura... Aliás cabe ressaltar aqui que devido à
precariedade da educação nas localidades atendidas pelo Programa Vocacional, o
mesmo acaba muitas e muitas vezes sendo uma das poucas alternativas
consistentes de um real acesso à uma educação de mais qualidade...tanto para
jovens quanto e especialmente para os mais velhos!
Mas filmes e seus modos
narrativos ( como Narradores de Javé) e mesmo temas mais amplos, ligados à
física quântica, como “Quem somos nós” foram vistos, discutidos em grupo e
inspiraram a criação nas turmas. Não podemos deixar de notar e refletir sobre
paradoxos da física quântica – e a palavra
paradoxo e sua incrível energia criativa foi tema de muitos e muitos de
nossos encontros. Os vocacionados se provocavam , inclusive em jogos: “ encontre
o paradoxo de...”
- E se até um átomo muda de comportamento quando
observado, o que dizer sobre o ator?
Paradoxo,
paradoxo....
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Para Jurij Alschitz, o
exercício faz o ator e não o contrário. Assim, experimentamos e experimentamos
e experimentamos.
De cumprimentos a
exercícios lúdicos que buscávamos abrir possibilidades criativas, estéticas. Um jogo
de cumprimentos abriu sua poesia em cena – a relação ambígua e paradoxal de um
casal.
Frida Kahlo e sua
obra-vida como material de deformação nos trouxeram o tema da morte e o tempo. A
morte como vigia da vida e uma relação bem humorada , inteligente e irônica , numa
surpreendente cena criada por uma das turmas ( na maioria jovens na faixa dos
14 aos 21 anos) de uma gravação de um vídeo institucional em que a Morte criava
uma espécie de programa de entrevistas macabaro e bem humorado para auxiliar
aqueles que passavam por este misterioso momento. Uma cena divertida e
altamente filosófica com agudo senso de observação social e poder de crítica,
através do riso. Um grande momento no processo – a apropriação criativa, única,
de um material de deformação para inspirar um vôo autônomo e potente !
E tivemos mais, e mais
e mais. Quadros do Magritte e mitos gregos sendo usados para cenas amplas de
navegação em uma sala, um mar e um barquinho com um só remador que vai
acumulando seus encontros, como Ulisses, na busca da volta para casa. Mas
vivemos num mundo flexível, múltiplo, mutável, de diferentes pontos de vista. E
o barco, ao invés de chegar em casa, chega na banheira de uma senhora.
Paradoxo....
O tempo como tema, o tempo como pesquisa, o
tempo que se abria e se dilatava. O tempo cronológico se tornou pouco como
única apreensão do tempo e a turma, poeticamente e em suas discussões, dialogava
com filósofos como Bergson , de maneira simples e despretensiosa, trocando
experiências, vivências, histórias de vida.
E experimentamos, nas criações , o tempo
subversivo da duração o tempo bergsoniano : “múltiplo, elástico, complexo, carente de um
ritmo único”. “Contra a consciência diluída e segmentada do tempo cronológico,
exteriorizada e dependente das coisas, ocorre reapropriar-se individualmente da
existência, redescobrir em nós mesmos a fonte da espontaneidade e da
transformação, o ímpeto “floreal”, antimecaniscista. Se na moldura do tempo
especializado assiste-se à dissipação do eu e à sua direta subordinação às exigências
sociais despersonalizantes, no interior da “duração”, cada um administra e
capitaliza o próprio desenvolvimento, provocando uma “avalanche sobre si mesmo”. (Bodei, 17, 18, citando Bergson)
E provocamos avalanches
sobre nós mesmos . Equestionávamos:
Como sair da condição
normal da inércia, do empobrecimento frequente e da passividade da consciência?
E o hábito nos arrasta? “A maior parte
de nosso tempo vivemos no exterior de nós mesmos, só percebemos do nosso eu um
fantasma desbotado, sombra que a duração
pura projeta sobre o espaço homogêneo. A nossa existência desenvolve-se pois,,
mais no espaço do que no tempo; vivemos mais no mundo exterior do que para nós;
falamos mais do que pensamos; “agem sobre nós” mais do que agimos nós mesmos.
Agir livremente é tomar posse de si, é entrar de novo na duração pura.” ( Bergson,
Essai sur lés donnés immédiates de la conscience p. 151)
Para a turma da tarde,
estas histórias de vida e seus cruzamentos com o outro e com diferentes tempos
foi tema de seu trabalho poético. Uma turma em que senhoras e jovens de 14 anos
conviviam. Um espaço de encontro construído com pluralidade, respeito, escuta.
Um processo belo ,
potente, plural, flexível. Mas que sofre e muito com sua descontinuidade e em
muitos casos falta de estrutura. Descontinuidade – num momento em que se
instaura um processo forte e potente o trabalho se interrompe. O Vocacional
este ano começou em abril e termina em novembro. Como instaurar um verdadeiro
processo artístico pedagógico com a qualidade que os artistas orientadores e
coordenadores de equipe e vocacionados criam com interrupções tão grandes? Como
instaurar um processo artístico pedagógico continuado com 4 meses de quebra, de
ruptura?
“Para mim o Vocacional
é primeira necessidade. O teatro abriu minha vida. E agora, que estamos quentes
e dentro do processo vamos ter que parar?”, diz Márcia Silva, de 50 anos.
Questionamentos a uma
política pública em que a cultura ainda aparece com um orçamento tão menor em
relação a outras instâncias que a constituição brasileira assegura aos seus
cidadãos ...
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