A.O. Luciana Bortoletto
Equipamento: Bibliteca Monteiro Lobato/
Equipe Centro - Oeste
Projeto Vocacional Dança
Coordenadora: Yaskara Manzini
“Não tinha consciência
sobre meu corpo. Eu era o corpo, este era a extensão da minha consciência, eu o
habitava como se habita uma mãe. (...) Nunca perca a confiança em seu corpo;
confiar no corpo é confiar na vida”.
(Dersu - Vocacionado Biblioteca Monteiro Lobato.)
O texto que abre este escrito faz
parte de um "dossiê" que pedi aos vocacionados no início dos
encontros, em abril, no qual cada um poderia contar "A História do (meu) corpo". Experiências corporais
"divisoras de águas", vivências que contribuíram para o modo de ser e
estar no mundo atualmente. A instrução foi: refletir sobre o "O que te constitui e o que te move?".
Assim começaram as orientações em abril deste ano.
Aqui, optei por abordar apenas o que
ocorre nos encontros, distinguindo da relação com equipamento apesar de saber
que o ambiente pode também determinar a qualidade dos processos.
A orientação acontece em dias e
períodos distintos: quintas à noite e sextas à tarde. Essa diferença tem sido
decisiva no processo de formação das duas turmas, pois interfere no perfil dos
vocacionados e, consequentemente, nas expectativas iniciais de cada um em
relação ao conteúdo a ser desenvolvido ao longo do tempo. À noite as pessoas
chegam após um dia inteiro de trabalho e estudos. Alguns chegam muito cansados.
À tarde, por sua vez, é a metade do dia e os estímulos são outros. À noite
ficamos em sala; à tarde ocupamos também a praça. Em cada turma há diferentes
expectativas quanto ao que pode ser desenvolvido nos encontros. A relevância dessas
especificidades no uso do espaço e nível de energia dos participantes nas
atividades está no fato de as expectativas terem influência sobre a qualidade
do que se vive nos encontros; na maneira como eu enquanto artista-orientadora
proponho procedimentos artístico-pedagógicos que possam contribuir para a construção
de sentidos e instauração de processos artísticos.
Ambas as turmas são bastante
heterogêneas: constituídas por estudantes de artes corporais, educadores,
atores, moradores da Vila Buarque com idade acima de 60 anos com ocupações diversas
no campo profissional; há também adolescentes com idade entre dezesseis e
dezoito anos. Essas múltiplas corporeidades¹ além de apontarem para as peculiaridades
de cada um, também configuram um corpo coletivo. Cada indivíduo e coletivo
necessita de um tempo para que seja construído um espaço de aprofundamento nas
questões que fazem parte da linguagem de dança.
Ao considerar a importância e
responsabilidade de orientar, tocar e ser tocado pelo outro, provocar
encontros, disparar processos a partir do Corpo em relação, talvez a questão
mais importante para mim, enquanto artista, aprendiz e orientadora, seja: “Como
acolher as diferentes corporeidades em um contexto específico e nele provocar o
desenvolvimento de potencialidades artísticas em cada artista-vocacionado e no
coletivo?” Em primeiro lugar, acredito na necessidade de um ambiente que
transmita confiança para que haja entrega individual, respeito mútuo e prazer
ao dançar.
Tomada de consciência de si
Esse respeito se dá com a tomada de
consciência sobre múltiplas possibilidades de corpo. Depois é possível
organizar as questões que surgem ao longo do processo como materialidade
artística, enquanto dança. E que dança é essa? O caminho que escolhi foi pela
via da educação somática² e o desafio é elaborar procedimentos capazes de
direcionar o foco do vocacionado para o Corpo em camadas, ou seja, de sua
estrutura e particularidades para sua relação com o Outro e reflexões mais
amplas e coletivas. Tentar abordar a dança de modo que ela possa emergir relativamente
"livre" de possíveis pré-conceitos e pré-julgamentos sobre o que é
certo ou errado e bonito ou feio quando se dança, contextualizando cada prática
e refletindo sobre elas. Perceber o movimento a partir do osso ou de outro
sistema do corpo, por meio do toque, imagem, sensação, movimentos e conexões
com as diversas subjetividades; trabalhar com a descoberta e construção de
sentidos: “O que me move?” “Como eu me movo?” “Com quem estou dançando?”
"O que estou dizendo enquanto danço?" Ir do objetivo ao subjetivo,
encontrar espaços e relações.
“Como criar a partir do dissenso, das
fricções e dúvidas?”
(Pergunta
que faço a mim e compartilho com eles.)
É possível reconhecer limites e
particularidades como potencialidades e argumentos em dança? Quais os pontos universais
nas peculiaridades? Sabe-se que o assunto primordial de todo encontro é o
Corpo, assunto em comum para o grupo estabelecer uma comunicação e relação entre
si. E nas relações, reconhecer, confiar e desenvolver o que emerge das fricções.
Ao trabalhar fundamentos de dança
com abordagem somática, o vocacionado passa a ser um pesquisador-criador-intérprete de sua própria dança. Ele investiga,
explora, se organiza no espaço. É um processo que está ligado à presença e apropriação
de ferramentas para criar coisas com elas. Apoiar-se no próprio corpo.
Métodos somáticos podem estar na
base de qualquer estilo de dança, portanto não anula ou inviabiliza que cada um
explore movimentos que façam parte de sua trajetória, como é o caso de três
vocacionados com forte trabalho em danças brasileiras. Apesar de trabalharmos
elementos de dança contemporânea e as abordagens de consciência corporal, suas
referências aparecem sempre que pesquisam, improvisam e criam.
Começamos os encontros em abril com
imagens do corpo humano desde o período embrionário até o fim do primeiro ano
de vida. Fizemos inúmeros trabalhos de reconhecimento da coluna vertebral,
depois passamos para os volumes de costelas e respiração. Estudamos os pés e
sua relação com a organização do olhar, para estudo da Presença e qualidade
expressiva na cena. Apesar de resvalar em aspectos terapêuticos, as abordagens
somáticas têm sido frequentemente aplicadas com ênfase no desenvolvimento
artístico, como processo de criação em dança cênica. E então, eis que emerge o
“Tempo” em suas múltiplas implicações e sentidos:
Camadas e camadas de tempo
Tempo
para instaurar um ambiente acolhedor das diferenças; tempo da experiência;
tempo da experiência no âmbito coletivo; Tempo de pesquisa, de criação; Tempo
para que haja fluência, ritmo de trabalho. Tempo das trajetórias internas dos
movimentos; tempo hábil para organizar isso enquanto dança; tempo do relógio, a
passagem dos meses e as necessidades de transformar isso em material que possa
ser compartilhado enquanto ação, exercício cênico e resultado de um processo.
Em meio a uma dinâmica contraditória
- tempos externo e internos - alguns
elementos essenciais podem se perder ao serem pressionados pela aproximação do
fim do ano. Por outro lado, tenho acreditado cada vez mais na potência do Corpo
consciente, corpo que é existência e relação com o mundo. Isso me leva ao
conceito de emancipação, um princípio fundamental do Programa Vocacional:
“Assim, a emancipação não é uma utopia
longínqua, a ser perseguida em devaneios, mas é formada por práticas constantes
de liberdade e reflexão, de ação e de apreciação sobre o fazer artístico, em
infinito processo de investigação e descoberta. A emancipação no Programa
Vocacional envolve a produção de processos de subjetivação dos participantes e
seus coletivos. (...) à arte, à filosofia e à educação caberiam a tarefa de produzir
novas subjetividades, ou seja, de dotar o ser humano de uma nova capacidade de
ser sujeito de seus próprios atos e processos”³
Acredito
no trabalho desenvolvido no Vocacional como algo que tem fortes desdobramentos
para além dos encontros. Pois, pelo fato de buscar a produção de
subjetividades, apropriação e emancipação, o tempo é parceiro a médio e longo
prazo desse trabalho. Não há como ter pressa. Busco, persigo a prontidão e a porosidade para lidar com minhas
próprias expectativas e dúvidas perante todas as forças reconhecíveis desse
espaço de atuação. Procuro
contextualizar os procedimentos aplicados e provocar questionamentos, ouvir o
que têm a dizer; é uma linha tênue que me separa do papel do professor e onde
me reconheço como pesquisadora, criadora e orientadora. Também preciso de um
tempo de reconhecimento daquele grupo e uma escuta muito apurada. Estou em
exercício constante.
Se
“é importante que todos
os participantes tenham conhecimento da função, origem e utilização de cada
técnica e procedimento, apropriando-se com isso destes meios de produção,
refletindo constantemente sobre a utilização de tais meios e sobre os
resultados de tal processos na criação de cada material artístico”5.
então é possível dizer que a questão do
tempo é realmente ampla nesse contexto por se tratar de processos que vão em
busca de profundidade nas relações com o que é desenvolvido em conjunto.
Qual é o tempo de um
processo-mergulho?
Ao
observar a multiplicidade que constitui uma turma no contexto do Vocacional
Dança, a exemplo do que tenho vivido este ano com os vocacionados e em outros
ambientes fora dele, ao encontrar pessoas como Nóris que tem oitenta anos e Geisa, dezesseis anos e ambas dançam com um
tema como "coluna vertebral" e isso as leva para "lugares"
de subjetividade igualmente potentes em suas peculiaridades; onde há inúmeras
visões, posturas, percepções individuais e coletivas sobre corpo, história e
tempo, ser e estar no mundo, reconheço no texto a seguir um pouco disso tudo.
Trata-se de um trecho do texto “Tempo sem Tempo”, de Peter Pal Pelbart, no qual
ele cita uma reflexão do filósofo Michel Serres:
"O tempo deveria
ser pensado como um lenço amassado, e não como um lenço passado. O próprio
desenvolvimento da História assemelha-se ao que descreve a teoria do caos.
Fatos que na linha do tempo seriam distantes, estão intimamente ligados,
eventos que numa suposta linha do tempo estão muito próximos, são muito
distantes."
Notas:
¹ Quando menciono o termo
“corporeidade”, inspiro-me no conceito de “homem total” proposto por Marcel Mauss em seu livro
“Sociologia e Antropologia”, no qual ele aponta, ao discorrer sobre as técnicas
corporais em diferentes sociedades, tal conceituação como sendo um tríplice
ponto de vista, composto por aspectos sociais,psicológicos e fisiológicos.
² Débora Bolsanello, no artigo “Movimento em primeira
pessoa do Singular”, define “Educação Somática”: campo teórico e prático cujos
métodos se interessam pela consciência do corpo e seu movimento no espaço”.
³ Trecho extraído do Material Norteador - Programa
Vocacional.
4 In: Material Norteador - Programa
Vocacional.
5 In: Material Norteador - Programa
Vocacional.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
MAUSS, Marcel. “As técnicas corporais”.
In: Sociologia e Antropologia. Trad. de Mauro W.B. de Almeida. São Paulo: EPU,
1974
BOLSANELLO, Débora. “Movimento em
primeira pessoa no singular”. Disponível em: facebook.com/deborabolsanello
FARINA, Amilcar, VILLARDI, Fábio,
BERNARD, Isabelle, DELMANTO, Ivan, GENTILLE, Luciano, SCHIMIDT, Suzana. Proposta Artístico-pedagógica: Material Norteador.
PELBART, Peter Pal. "Tempo sem
tempo". In: Nau do Tempo-Rei.
DICIONÁRIO DO CORPO. MARZANO, Michela
(Org.). Trad. de Lucia Pereira de Souza - 1 edição - São Paulo - Edições
Loyola, Centro Universitário São Camilo; 2012.
Nenhum comentário:
Postar um comentário