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quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Experiência Corporal, Tempo e Dança: Investigações e construção de sentidos - AGOSTO 2013


A.O. Luciana Bortoletto
Equipamento: Bibliteca Monteiro Lobato/
Equipe Centro - Oeste
Projeto Vocacional Dança
Coordenadora: Yaskara Manzini


“Não tinha consciência sobre meu corpo. Eu era o corpo, este era a extensão da minha consciência, eu o habitava como se habita uma mãe. (...) Nunca perca a confiança em seu corpo; confiar no corpo é confiar na vida”.
(Dersu - Vocacionado Biblioteca Monteiro Lobato.)
            O texto que abre este escrito faz parte de um "dossiê" que pedi aos vocacionados no início dos encontros, em abril, no qual cada um poderia contar "A História do (meu) corpo". Experiências corporais "divisoras de águas", vivências que contribuíram para o modo de ser e estar no mundo atualmente. A instrução foi: refletir sobre o  "O que te constitui e o que te move?". Assim começaram as orientações em abril deste ano.

            Aqui, optei por abordar apenas o que ocorre nos encontros, distinguindo da relação com equipamento apesar de saber que o ambiente pode também determinar a qualidade dos processos.

            A orientação acontece em dias e períodos distintos: quintas à noite e sextas à tarde. Essa diferença tem sido decisiva no processo de formação das duas turmas, pois interfere no perfil dos vocacionados e, consequentemente, nas expectativas iniciais de cada um em relação ao conteúdo a ser desenvolvido ao longo do tempo. À noite as pessoas chegam após um dia inteiro de trabalho e estudos. Alguns chegam muito cansados. À tarde, por sua vez, é a metade do dia e os estímulos são outros. À noite ficamos em sala; à tarde ocupamos também a praça. Em cada turma há diferentes expectativas quanto ao que pode ser desenvolvido nos encontros. A relevância dessas especificidades no uso do espaço e nível de energia dos participantes nas atividades está no fato de as expectativas terem influência sobre a qualidade do que se vive nos encontros; na maneira como eu enquanto artista-orientadora proponho procedimentos artístico-pedagógicos que possam contribuir para a construção de sentidos e instauração de processos artísticos.
           
            Ambas as turmas são bastante heterogêneas: constituídas por estudantes de artes corporais, educadores, atores, moradores da Vila Buarque com idade acima de 60 anos com ocupações diversas no campo profissional; há também adolescentes com idade entre dezesseis e dezoito anos. Essas múltiplas corporeidades¹ além de apontarem para as peculiaridades de cada um, também configuram um corpo coletivo. Cada indivíduo e coletivo necessita de um tempo para que seja construído um espaço de aprofundamento nas questões que fazem parte da linguagem de dança.

            Ao considerar a importância e responsabilidade de orientar, tocar e ser tocado pelo outro, provocar encontros, disparar processos a partir do Corpo em relação, talvez a questão mais importante para mim, enquanto artista, aprendiz e orientadora, seja: “Como acolher as diferentes corporeidades em um contexto específico e nele provocar o desenvolvimento de potencialidades artísticas em cada artista-vocacionado e no coletivo?” Em primeiro lugar, acredito na necessidade de um ambiente que transmita confiança para que haja entrega individual, respeito mútuo e prazer ao dançar.

Tomada de consciência de si

            Esse respeito se dá com a tomada de consciência sobre múltiplas possibilidades de corpo. Depois é possível organizar as questões que surgem ao longo do processo como materialidade artística, enquanto dança. E que dança é essa? O caminho que escolhi foi pela via da educação somática² e o desafio é elaborar procedimentos capazes de direcionar o foco do vocacionado para o Corpo em camadas, ou seja, de sua estrutura e particularidades para sua relação com o Outro e reflexões mais amplas e coletivas. Tentar abordar a dança de modo que ela possa emergir relativamente "livre" de possíveis pré-conceitos e pré-julgamentos sobre o que é certo ou errado e bonito ou feio quando se dança, contextualizando cada prática e refletindo sobre elas. Perceber o movimento a partir do osso ou de outro sistema do corpo, por meio do toque, imagem, sensação, movimentos e conexões com as diversas subjetividades; trabalhar com a descoberta e construção de sentidos: “O que me move?” “Como eu me movo?” “Com quem estou dançando?” "O que estou dizendo enquanto danço?" Ir do objetivo ao subjetivo, encontrar espaços e relações.

“Como criar a partir do dissenso, das fricções e dúvidas?”
(Pergunta que faço a mim e compartilho com eles.)
           
            É possível reconhecer limites e particularidades como potencialidades e argumentos em dança? Quais os pontos universais nas peculiaridades? Sabe-se que o assunto primordial de todo encontro é o Corpo, assunto em comum para o grupo estabelecer uma comunicação e relação entre si. E nas relações, reconhecer, confiar e desenvolver o que emerge das fricções.

            Ao trabalhar fundamentos de dança com abordagem somática, o vocacionado passa a ser um pesquisador-criador-intérprete de sua própria dança. Ele investiga, explora, se organiza no espaço. É um processo que está ligado à presença e apropriação de ferramentas para criar coisas com elas. Apoiar-se no próprio corpo.


            Métodos somáticos podem estar na base de qualquer estilo de dança, portanto não anula ou inviabiliza que cada um explore movimentos que façam parte de sua trajetória, como é o caso de três vocacionados com forte trabalho em danças brasileiras. Apesar de trabalharmos elementos de dança contemporânea e as abordagens de consciência corporal, suas referências aparecem sempre que pesquisam, improvisam e criam.
           
            Começamos os encontros em abril com imagens do corpo humano desde o período embrionário até o fim do primeiro ano de vida. Fizemos inúmeros trabalhos de reconhecimento da coluna vertebral, depois passamos para os volumes de costelas e respiração. Estudamos os pés e sua relação com a organização do olhar, para estudo da Presença e qualidade expressiva na cena. Apesar de resvalar em aspectos terapêuticos, as abordagens somáticas têm sido frequentemente aplicadas com ênfase no desenvolvimento artístico, como processo de criação em dança cênica. E então, eis que emerge o “Tempo” em suas múltiplas implicações e sentidos:
           
Camadas e camadas de tempo
           
Tempo para instaurar um ambiente acolhedor das diferenças; tempo da experiência; tempo da experiência no âmbito coletivo; Tempo de pesquisa, de criação; Tempo para que haja fluência, ritmo de trabalho. Tempo das trajetórias internas dos movimentos; tempo hábil para organizar isso enquanto dança; tempo do relógio, a passagem dos meses e as necessidades de transformar isso em material que possa ser compartilhado enquanto ação, exercício cênico e resultado de um processo.
           
            Em meio a uma dinâmica contraditória -  tempos externo e internos - alguns elementos essenciais podem se perder ao serem pressionados pela aproximação do fim do ano. Por outro lado, tenho acreditado cada vez mais na potência do Corpo consciente, corpo que é existência e relação com o mundo. Isso me leva ao conceito de emancipação, um princípio fundamental do Programa Vocacional:

“Assim, a emancipação não é uma utopia longínqua, a ser perseguida em devaneios, mas é formada por práticas constantes de liberdade e reflexão, de ação e de apreciação sobre o fazer artístico, em infinito processo de investigação e descoberta. A emancipação no Programa Vocacional envolve a produção de processos de subjetivação dos participantes e seus coletivos. (...) à arte, à filosofia e à educação caberiam a tarefa de produzir novas subjetividades, ou seja, de dotar o ser humano de uma nova capacidade de ser sujeito de seus próprios atos e processos”³

               Acredito no trabalho desenvolvido no Vocacional como algo que tem fortes desdobramentos para além dos encontros. Pois, pelo fato de buscar a produção de subjetividades, apropriação e emancipação, o tempo é parceiro a médio e longo prazo desse trabalho. Não há como ter pressa. Busco, persigo a  prontidão e a porosidade para lidar com minhas próprias expectativas e dúvidas perante todas as forças reconhecíveis desse espaço de atuação.  Procuro contextualizar os procedimentos aplicados e provocar questionamentos, ouvir o que têm a dizer; é uma linha tênue que me separa do papel do professor e onde me reconheço como pesquisadora, criadora e orientadora. Também preciso de um tempo de reconhecimento daquele grupo e uma escuta muito apurada. Estou em exercício constante. 

Se
“é importante que todos os participantes tenham conhecimento da função, origem e utilização de cada técnica e procedimento, apropriando-se com isso destes meios de produção, refletindo constantemente sobre a utilização de tais meios e sobre os resultados de tal processos na criação de cada material artístico”5.

então é possível dizer que a questão do tempo é realmente ampla nesse contexto por se tratar de processos que vão em busca de profundidade nas relações com o que é desenvolvido em conjunto.

Qual é o tempo de um processo-mergulho?

             Ao observar a multiplicidade que constitui uma turma no contexto do Vocacional Dança, a exemplo do que tenho vivido este ano com os vocacionados e em outros ambientes fora dele, ao encontrar pessoas como Nóris que tem oitenta anos e  Geisa, dezesseis anos e ambas dançam com um tema como "coluna vertebral" e isso as leva para "lugares" de subjetividade igualmente potentes em suas peculiaridades; onde há inúmeras visões, posturas, percepções individuais e coletivas sobre corpo, história e tempo, ser e estar no mundo, reconheço no texto a seguir um pouco disso tudo. Trata-se de um trecho do texto “Tempo sem Tempo”, de Peter Pal Pelbart, no qual ele cita uma reflexão do filósofo Michel Serres:

"O tempo deveria ser pensado como um lenço amassado, e não como um lenço passado. O próprio desenvolvimento da História assemelha-se ao que descreve a teoria do caos. Fatos que na linha do tempo seriam distantes, estão intimamente ligados, eventos que numa suposta linha do tempo estão muito próximos, são muito distantes."


Notas:
¹ Quando menciono o termo “corporeidade”, inspiro-me no conceito de “homem total”  proposto por Marcel Mauss em seu livro “Sociologia e Antropologia”, no qual ele aponta, ao discorrer sobre as técnicas corporais em diferentes sociedades, tal conceituação como sendo um tríplice ponto de vista, composto por aspectos sociais,psicológicos e fisiológicos.
² Débora Bolsanello, no artigo “Movimento em primeira pessoa do Singular”, define “Educação Somática”: campo teórico e prático cujos métodos se interessam pela consciência do corpo e seu movimento no espaço”.
³ Trecho extraído do Material Norteador - Programa Vocacional.
4 In: Material Norteador - Programa Vocacional.
5 In: Material Norteador - Programa Vocacional.




REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

MAUSS, Marcel. “As técnicas corporais”. In: Sociologia e Antropologia. Trad. de Mauro W.B. de Almeida. São Paulo: EPU, 1974

BOLSANELLO, Débora. “Movimento em primeira pessoa no singular”. Disponível em: facebook.com/deborabolsanello

FARINA, Amilcar, VILLARDI, Fábio, BERNARD, Isabelle, DELMANTO, Ivan, GENTILLE, Luciano, SCHIMIDT, Suzana. Proposta Artístico-pedagógica: Material Norteador.

PELBART, Peter Pal. "Tempo sem tempo". In: Nau do Tempo-Rei.

DICIONÁRIO DO CORPO. MARZANO, Michela (Org.). Trad. de Lucia Pereira de Souza - 1 edição - São Paulo - Edições Loyola, Centro Universitário São Camilo; 2012.







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