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sábado, 30 de novembro de 2013

O Artista / AO em movimento



O Artista / Artista Orientador em Movimento
por Elenita Queiróz
08.08.2013


Quem fica parado é poste.

            Com a sapiência e simplicidade da frase acima, por todos nós tão conhecida, dou como iniciado meu manancial de reflexões sobre nosso lugar, trabalho, ofício, tarefa, função, sina (afi!) de artista e artista-orientador, que de simples nada tem.
            Simples é ser poste (e que me perdoem os postes e seus parentes mais próximos). Difícil, e bom mesmo, é ser gente. Difícil porque requer certa dose de coragem, empenho, dedicação, paciência e boa vontade; e bom... Bom porque para ser gente é preciso um pouco mais; é preciso ir um tantinho além do previsto, vestir a carapuça, botar sebo nas canelas, correr atrás do prejuízo, pegar touro a unha, soltar a franga e os cachorros... Bom mesmo é ser gente porque gente se mexe, se move. E melhor ainda porque gente tem o poder, não só de mover a si mesmo, mas também (e principalmente) de mover os outros e as coisas ao seu redor.  Então eu me pergunto, porque não fazê-lo?
            Nós, que somos gente, nos movemos desde que nascemos e assim vamos continuar até que nosso sangue pare de correr, nosso corpo pare de pulsar, nossa respiração pare de vez. Mas ate lá, nos manteremos em movimento. E é pelo movimento, pura e simplesmente pelo prazer de sentir o corpo riscando o ar, o chão deslizando debaixo de nossos pés, o suor escorrendo pela pele, que estamos gente, que estamos artistas do movimento. E como transpiramos nessa nossa jornada! Um suor que, muito além de cumprir sua função primeira fisiológica, emerge, gotícula por gotícula, impregnado de tantos e tantos desejos, quereres, prazeres, dissabores. Nas palavras de Murray Louis: "Para a maioria das pessoas, transpirar é simplesmente uma função corporal que mantem em funcionamento as lavanderias e as lojas de limpeza. "Suado" costuma ser sinônimo de "sujo". Suar é uma situação de vida largamente subestimada e genericamente denegrida, e aqui estou eu para declarar: o suor é lindo. Acender a fornalha humana e levar a ebulição sua ampla consistência liquida, é disso que se trata."[1]
            O suor é lindo, sim! No entanto, tão mais fácil seria se nos contentássemos com o nosso próprio suor e pronto. Mas não, nananinanao! Nosso suor não nos basta! É preciso mais! É preciso romper fronteiras e irradiar, é preciso ebulição coletiva, é preciso "acender a fornalha humana"! Estas, pra mim, são as palavras de ordem, tanto em meu trabalho criativo como profissional da danca quanto na atuação como artista-orientadora no Programa Vocacional Dança. E que tarefa gloriosa! E que tarefa descomunal! E que tarefa desconcertante, dura e desigual, num contexto social contemporâneo que cria e uniformiza desejos muitas vezes duvidosos e irreais, que soterra e aprisiona a diversidade e o livre pensar, que minimiza e banaliza as dores e os sofrimentos, que lenta e sorrateiramente vai apagando quaisquer vestígios de ebulição da alma humana.
            É nesta conjuntura que Artista e Artista Orientador (estes dois lados da mesma moeda) se entrecruzam articulando questões próprias de um e do outro numa equação que tem como elementos fundamentais, de ambos os lados, a inquietude, a escuta e a ação.
            Como artistas estamos acostumados ao fluxo desconcertante do processo criativo e à inconstância do ato criador que visa, em seu cerne, a permanência do vivo, do humano em sua plenitude, do individuo em toda a sua potência. Nas palavras de Jorge de Albuquerque Vieira "O ato de criar é uma crise denotativa de um alto nível de complexidade viva. Criar, para nós, é viver, e os cientistas e artistas são aqueles que mais intensamente estão sujeitos a esse impulso vital"[2] . Impulso este que livremente chamo de inquietude; esse sentimento que nos envolve por inteiro, que nos move e nos mantém no não lugar, na incerteza, na dúvida. "A duvida é um estado desagradável e incomodo, de que lutamos por libertar-nos e passar ao estado da crença: este é um estado de tranquilidade e satisfação que não desejamos evitar, ou transformar a crença em algo diverso. Pelo contrario, apegamo-nos tenazmente não apenas a crer, mas a crer no que cremos."[3] Nesse tortuoso e intrigante processo, a inquietude própria do artista, é nossa maior parceira. Em nosso íntimo, algo está sempre a espreita aguardando o alarde para o rompimento de uma estabilidade tateante, efêmera, quase incomoda. Tão aguardado e ao mesmo tempo tão temido, este alarde surge como um rompimento do padrão anterior e dá vazão ao conflito. Está dado o start de um processo criativo. Nesta trajetória, o conflito, uma vez instaurado, gera instabilidade e incerteza. "A fase do rompimento significa uma crise de algum nível no conjunto de hábitos desenvolvidos pelo criador, o que gera nele angustia e desconforto. A crise nos hábitos é uma crise em crenças." [4]
            Uma vez rompido, o sistema conceitual inicial terá de ser reorganizado diante da nova situação colocada. A "crise" se instaura e entra em cena toda uma gama de ações, reflexões e experimentos na tentativa de promover a reorganização e alcançar um novo e ainda desconhecido estado de equilíbrio, mesmo que breve. O processo criativo encontra-se no momento mesmo da transição, da tentativa de resolução de todas as problemáticas impostas; ele é a transição de um metaequilibrio a outro, de um estado de crenças a outro, num fluxo que se propõe a complexização[5] e  potencialização do individuo.
            E é nesse quesito, que nos artistas e artistas educadores acabamos remando contra a maré. Pois, como seguir no sentido da complexização do indivíduo uma vez mergulhados nesse grande mar que mais pretende a simplificação e a redução do individuo em seu mínimo potencial de ação possível? Que desemboca na massificação dos comportamentos, necessidades e pensamentos?
            A única resposta que vejo e' agir. Ou melhor, continuar em ação.
            Assim como para o artista criador, o trabalho do Artista Orientador do Vocacional Dança está intimamente ligado à compreensão sensível das dinâmicas ao seu redor. Compreensão que passa principalmente pela escuta e olhar atentos aos contrastes próprios da sua realidade e da realidade de seus locais de atuação (e aqui mais especificamente nos referimos aos CEUs - Centro de Educação Unificado - e seus arredores) ou seja: o pré conhecimento (ou total ignorância), aceitação e apoio (ou total displicência) dos gestores dos equipamentos e coordenadores de Cultura no sentido de alimentar as propostas dos AOs; as expectativas dos vocacionados com relação ao programa, com relação a si mesmos e ainda com relação as suas reais disponibilidades em fazer parte disto; a delicada dissonância entre seus desejos criativos e as exigências do cotidiano (trabalho, família, etc). Uma das  funções do AO é criar procedimentos para compreender e dar vazão a expressão artística das pessoas que se envolvem no Vocacional, e perceber suas necessidades e experiências como cidadãos nesta cidade,  que flui de forma complexa e desordenada.
Essas questões e reflexões, assim como muitas outras, fazem do dia a dia do Artista Orientador uma grande interrogação onde, muitas vezes, o que se sabe é que não dá pra saber tudo, ou quase nada. Onde "variável" e "instável" são palavras chaves, e a única certeza é de que não há certeza alguma. Saber, no Programa Vocacional, é estar atento ao mais leve sinal, aos pequenos gestos que poderiam nada dizer, mas que dizem, e muito. É escutar com o corpo inteiro, é lidar com demandas tão dispares e expectativas idem. Saber, é  pois,  estar pronto e preparado para o inesperado.
            E mesmo assim, com tanto vai-e-vem (rodeados que estamos por variáveis que tornam a experiência mais inquietante e desafiadora) acredito que, o que nós  artistas e artistas-orientadores buscamos neste caminho que não se sabe muito bem onde vai dar, é construir uma relação de confiança, um espaço/tempo que é de cada um, que é único e é de todos. É construir um ambiente que permita a cada um (vocacionado e artista-orientador) ser o que lhe convier da forma que melhor lhe couber naquele momento em especial, naquele dia... e pronto. No meu entender, a instauração de processos criativos emancipatórios (uma das premissas do programa Vocacional) passa primeiramente pela emancipação de si para consigo. Do simples (e tão duro) permitir-se e tudo que essa ação pode desencadear.  Permitir-se a experiência do novo e perceber-se criador. Permitir-se  dizer sim, e  por outro lado, ter a liberdade e segurança de salientar um sonoro e sincero não.
            Ser artista e Artista Orientadora no Programa Vocacional Dança é mover-se e mover desejos, mover paixões e mover almas. É transitar de crença em crença. É provocar rompimentos, crises, conflitos; reorganizar, reestruturar e alcançar metaequilibrios. Compartilhando lembranças, memórias, desapontamentos, saberes, anseios e inquietações, permitimo-nos emancipar-nos de antigos paradigmas, gerando crises e conflitos, abrindo novos caminhos. E é exatamente isso que torna nossa experiência no Programa Vocacional desafiadora, extenuante, estimulante, engrandecedora e enriquecedora. Mais uma vez, nas palavras de Jorge Vieira: "Conhecer, logo transformar-se , é crescer em complexidade."
            Como artista e artista-orientadora, me permito a audácia de afirmar que a ebulição da alma, é uma realidade tangível, palpável, desejável que vem sendo, dia a dia, perseguida e construída.


[1] LOUIS, Murray . Dentro da Dança; tradução: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 1992.
[2]  VIEIRA, Jorge de Albuquerque. Teoria do Conhecimento e Arte.  CE Fortaleza. Expressão Gráfica, 2006.
[3] Jorge de Albuquerque Vieira citando Peirce (1975,77), pag 63.
[4] VIEIRA, Jorge de Albuquerque. Teoria do Conhecimento e Arte.  CE Fortaleza. Expressão Gráfica, 2006, pag 63.
[5] Conceito de Jorge Vieira.

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