O Artista / Artista Orientador em Movimento
por Elenita Queiróz
08.08.2013
Quem fica parado é poste.
Com a
sapiência e simplicidade da frase acima, por todos nós tão conhecida, dou como
iniciado meu manancial de reflexões sobre nosso lugar, trabalho, ofício, tarefa,
função, sina (afi!) de artista e artista-orientador, que de simples nada tem.
Simples
é ser poste (e que me perdoem os postes e seus parentes mais próximos). Difícil,
e bom mesmo, é ser gente. Difícil porque requer certa dose de coragem, empenho,
dedicação, paciência e boa vontade; e bom... Bom porque para ser gente é
preciso um pouco mais; é preciso ir um tantinho além do previsto, vestir a carapuça,
botar sebo nas canelas, correr atrás do prejuízo, pegar touro a unha, soltar a
franga e os cachorros... Bom mesmo é ser gente porque gente se mexe, se move. E
melhor ainda porque gente tem o poder, não só de mover a si mesmo, mas também (e
principalmente) de mover os outros e as coisas ao seu redor. Então eu me pergunto, porque não fazê-lo?
Nós,
que somos gente, nos movemos desde que nascemos e assim vamos continuar até que
nosso sangue pare de correr, nosso corpo pare de pulsar, nossa respiração pare
de vez. Mas ate lá, nos manteremos em movimento. E é pelo movimento, pura e simplesmente
pelo prazer de sentir o corpo riscando o ar, o chão deslizando debaixo de
nossos pés, o suor escorrendo pela pele, que estamos gente, que estamos artistas
do movimento. E como transpiramos nessa nossa jornada! Um suor que, muito além
de cumprir sua função primeira fisiológica, emerge, gotícula por gotícula,
impregnado de tantos e tantos desejos, quereres, prazeres, dissabores. Nas
palavras de Murray Louis: "Para
a maioria das pessoas, transpirar é simplesmente uma função corporal que mantem
em funcionamento as lavanderias e as lojas de limpeza. "Suado"
costuma ser sinônimo de "sujo". Suar é uma situação de vida
largamente subestimada e genericamente denegrida, e aqui estou eu para
declarar: o suor é lindo. Acender a fornalha humana e levar a ebulição sua
ampla consistência liquida, é disso que se trata."[1]
O
suor é lindo, sim! No entanto, tão mais fácil seria se nos contentássemos com o
nosso próprio suor e pronto. Mas não, nananinanao! Nosso suor não nos basta! É
preciso mais! É preciso romper fronteiras e irradiar, é preciso ebulição
coletiva, é preciso "acender a
fornalha humana"! Estas, pra mim, são as palavras de ordem, tanto em
meu trabalho criativo como profissional da danca quanto na atuação como
artista-orientadora no Programa Vocacional Dança. E que tarefa gloriosa! E que
tarefa descomunal! E que tarefa desconcertante, dura e desigual, num contexto
social contemporâneo que cria e uniformiza desejos muitas vezes duvidosos e
irreais, que soterra e aprisiona a diversidade e o livre pensar, que minimiza e
banaliza as dores e os sofrimentos, que lenta e sorrateiramente vai apagando
quaisquer vestígios de ebulição da alma humana.
É
nesta conjuntura que Artista e Artista Orientador (estes dois lados da mesma
moeda) se entrecruzam articulando questões próprias de um e do outro numa equação
que tem como elementos fundamentais, de ambos os lados, a inquietude, a escuta
e a ação.
Como
artistas estamos acostumados ao fluxo desconcertante do processo criativo e à
inconstância do ato criador que visa, em seu cerne, a permanência do vivo, do
humano em sua plenitude, do individuo em toda a sua potência. Nas palavras de
Jorge de Albuquerque Vieira "O ato de criar é uma crise denotativa de um
alto nível de complexidade viva. Criar, para nós, é viver, e os cientistas e
artistas são aqueles que mais intensamente estão sujeitos a esse impulso
vital"[2] . Impulso
este que livremente chamo de inquietude; esse sentimento que nos envolve por inteiro,
que nos move e nos mantém no não lugar, na incerteza, na dúvida. "A duvida
é um estado desagradável e incomodo, de que lutamos por libertar-nos e passar
ao estado da crença: este é um estado de tranquilidade e satisfação que não
desejamos evitar, ou transformar a crença em algo diverso. Pelo contrario,
apegamo-nos tenazmente não apenas a crer, mas a crer no que cremos."[3]
Nesse tortuoso e intrigante processo, a inquietude própria do artista, é nossa
maior parceira. Em nosso íntimo, algo está sempre a espreita aguardando o
alarde para o rompimento de uma estabilidade tateante, efêmera, quase incomoda.
Tão aguardado e ao mesmo tempo tão temido, este alarde surge como um rompimento
do padrão anterior e dá vazão ao conflito. Está dado o start de um processo criativo. Nesta trajetória, o conflito, uma
vez instaurado, gera instabilidade e incerteza. "A fase do rompimento
significa uma crise de algum nível no conjunto de hábitos desenvolvidos pelo
criador, o que gera nele angustia e desconforto. A crise nos hábitos é uma
crise em crenças." [4]
Uma
vez rompido, o sistema conceitual inicial terá de ser reorganizado diante da
nova situação colocada. A "crise" se instaura e entra em cena toda
uma gama de ações, reflexões e experimentos na tentativa de promover a reorganização
e alcançar um novo e ainda desconhecido estado de equilíbrio, mesmo que breve.
O processo criativo encontra-se no momento mesmo da transição, da tentativa de resolução
de todas as problemáticas impostas; ele é a transição de um metaequilibrio a
outro, de um estado de crenças a outro, num fluxo que se propõe a complexização[5]
e potencialização do individuo.
E
é nesse quesito, que nos artistas e artistas educadores acabamos remando contra
a maré. Pois, como seguir no sentido da complexização
do indivíduo uma vez mergulhados nesse grande mar que mais pretende a
simplificação e a redução do individuo em seu mínimo potencial de ação possível?
Que desemboca na massificação dos comportamentos, necessidades e pensamentos?
A
única resposta que vejo e' agir. Ou melhor, continuar em ação.
Assim
como para o artista criador, o trabalho do Artista Orientador do Vocacional Dança
está intimamente ligado à compreensão sensível das dinâmicas ao seu redor.
Compreensão que passa principalmente pela escuta e olhar atentos aos contrastes
próprios da sua realidade e da realidade de seus locais de atuação (e aqui mais
especificamente nos referimos aos CEUs - Centro de Educação Unificado - e seus
arredores) ou seja: o pré conhecimento (ou total ignorância), aceitação e apoio
(ou total displicência) dos gestores dos equipamentos e coordenadores de
Cultura no sentido de alimentar as propostas dos AOs; as expectativas dos vocacionados
com relação ao programa, com relação a si mesmos e ainda com relação as suas
reais disponibilidades em fazer parte disto; a delicada dissonância entre seus
desejos criativos e as exigências do cotidiano (trabalho, família, etc). Uma das funções do AO é criar procedimentos para
compreender e dar vazão a expressão artística das pessoas que se envolvem no
Vocacional, e perceber suas necessidades e experiências como cidadãos nesta
cidade, que flui de forma complexa e
desordenada.
Essas questões e reflexões, assim como muitas outras, fazem
do dia a dia do Artista Orientador uma grande interrogação onde, muitas vezes,
o que se sabe é que não dá pra saber tudo, ou quase nada. Onde
"variável" e "instável" são palavras chaves, e a única
certeza é de que não há certeza alguma. Saber, no Programa Vocacional, é estar
atento ao mais leve sinal, aos pequenos gestos que poderiam nada dizer, mas que
dizem, e muito. É escutar com o corpo inteiro, é lidar com demandas tão
dispares e expectativas idem. Saber, é pois,
estar pronto e preparado para o
inesperado.
E
mesmo assim, com tanto vai-e-vem (rodeados que estamos por variáveis que tornam
a experiência mais inquietante e desafiadora) acredito que, o que nós artistas e artistas-orientadores buscamos neste
caminho que não se sabe muito bem onde vai dar, é construir uma relação de confiança,
um espaço/tempo que é de cada um, que é único e é de todos. É construir um
ambiente que permita a cada um (vocacionado e artista-orientador) ser o que lhe
convier da forma que melhor lhe couber naquele momento em especial, naquele
dia... e pronto. No meu entender, a instauração de processos criativos emancipatórios
(uma das premissas do programa Vocacional) passa primeiramente pela emancipação
de si para consigo. Do simples (e tão duro) permitir-se e tudo que essa ação
pode desencadear. Permitir-se a
experiência do novo e perceber-se criador. Permitir-se dizer sim, e por outro lado, ter a liberdade e segurança de
salientar um sonoro e sincero não.
Ser
artista e Artista Orientadora no Programa Vocacional Dança é mover-se e mover
desejos, mover paixões e mover almas. É transitar de crença em crença. É
provocar rompimentos, crises, conflitos; reorganizar, reestruturar e alcançar
metaequilibrios. Compartilhando lembranças,
memórias, desapontamentos, saberes, anseios e inquietações, permitimo-nos
emancipar-nos de antigos paradigmas, gerando crises e conflitos, abrindo novos
caminhos. E é exatamente isso que torna nossa experiência no
Programa Vocacional desafiadora, extenuante, estimulante,
engrandecedora e enriquecedora. Mais uma vez,
nas palavras de Jorge Vieira: "Conhecer, logo transformar-se , é crescer
em complexidade."
Como
artista e artista-orientadora, me permito a audácia de afirmar que a ebulição
da alma, é uma realidade tangível, palpável, desejável que vem sendo, dia a
dia, perseguida e construída.
[1] LOUIS, Murray . Dentro da Dança;
tradução: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 1992.
[2] VIEIRA, Jorge de Albuquerque. Teoria do Conhecimento e Arte. CE Fortaleza. Expressão Gráfica, 2006.
[4] VIEIRA, Jorge de Albuquerque. Teoria do Conhecimento e Arte. CE
Fortaleza. Expressão Gráfica, 2006, pag 63.
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