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sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Ensaio de Mariana Duarte (AO do CEU Campo Limpo



Qual será o tamanho do nosso voo?
Estar no Vocacional pode ser uma experiência avassaladora em todos os sentidos. Eu já tive inúmeras e diversificadas experiências nesses 6 anos de participação no programa. Há uns dois anos, venho experimentando a possibilidade de se dançar fora do chão, apoiando-se em equipamentos aéreos utilizados no circo e pesquisando como fazer para transformar todo o processo, desde os primeiros desequilíbrios e quedas, em dança.
A dança aérea é uma pesquisa que envolve aparelhos suspensos nos quais podemos nos apoiar e sair do chão, alterando as relações de peso, apoio e verticalidade, e consequentemente influenciando as qualidades de movimento. É um trabalho que não requer noções básicas das técnicas tradicionais circenses, nem tão pouco um domínio de alguma técnica de dança. A pesquisa se desenvolve pouco a pouco junto com o conhecimento de como funciona cada suporte aéreo. Uns trazem mais possibilidades de giro, outros de balanço. Uns são flexíveis, outro duros, podem também ter todas essas qualidades juntas. Geralmente suportam mais de uma pessoa, o que possibilita o trabalho em grupo.
Nesse trabalho privilegia-se a pesquisa de movimento sobre a virtuose ou a técnica pura, e os caminhos para criação de movimento são desenvolvidos a partir de uma perspectiva de dinâmicas de movimento, de técnicas de percepção do peso/gravidade, transferência apoios, ou a partir de propostas da dança-teatro.
O fato de o corpo estar suspenso traz , inevitavelmente, uma técnica e um preparo para que se possa explorar as possibilidades de movimentação no espaço aéreo. A ausência da técnica e do preparo específico do circo podem dificultar o trabalho, mas são barreiras transitórias que aos poucos vão sendo superadas, porque, de fato, a técnica não é um fim nem um recurso expressivo no qual se apresenta uma estética do virtuosismo que se observa no circo.
Nesse sentido, os escritos de Klauss Vianna sobre a dança clássica (Vianna, 2005 [1990]) proprocionam ótimos caminhos de reflexão, já que servem também para pensar a relação com a técnica no circo versus no trabalho que acontece no Vocacional. Para ele, "a preocupação excessiva com a técnica é prejudicial", e se reflete num processo de criação (ou execução) de movimentos muito pautado pela forma. Não à toa o ballet clássico, assim como a tradição circense, têm na repetição da forma seus caminhos mais típicos de aprendizado: o aluno aprende “truques”, ou “passos”, sempre a partir de um ideal de “execução correta”. O movimento, portanto se reduz ao seu aspecto formal. Rudolf Laban formula algo parecido:

“A maioria das técnicas desenvolvidas têm em comum uma seleção mais ou menos limitada e concisa de exercícios fundamentais para o domínio corporal. Isto faz com que seja possível alcançar um alto grau de destreza na forma particular de movimento. Muitas vezes, porém, ajustar uma ferramenta e acondicionar o instrumento assumem tanta importância que passam por cima da pesquisa do material de movimento e o material adquirido é muito escasso” (Laban, 1990, p. 114)

De outro lado, não se trata de rechaçar a técnica: o próprio Klauss Vianna pondera que a técnica [clássica] “não é só isso”, é também um caminho para organizar fisicamente as emoções e conhecer o corpo; desde que o bailarino a exercite com os sentidos alertas (e não pela repetição mecânica) (ibidem, p. 30).
As propostas tanto de Vianna quanto de Laban nos abrem outros ângulos possíveis a partir dos quais se pode mobilizar a técnica, e nos permitem pensar em uma expressividade que é oriunda do próprio modo de funcionamento do corpo, dos próprios caminhos que o corpo encontra para executar “instruções corporais”, muito mais do que das formas finais. Essa proposta é interessante, acima de tudo, por dar mais liberdade para a expressão individual e para a singularidade dos corpos, ampliando, consequentemente, as possibilidades de criação.
Uma das grandes qualidades desse trabalho está na ludicidade que ele oferece, já que sair do chão, fazer pequenos voos ou giros em velocidade são experiências que vamos perdendo quando deixamos de ser criança. Nessa pesquisa, tudo isso é retomado e experienciado. Talvez para nós adultos essa sensação possa estar conectada à sensação de vertigem a qual Milan Kundera, de forma poética, define em A Insustentável leveza do Ser.
"O que é vertigem? Medo de cair? Mas porque temos vertigem num mirante cercado por uma balaustra sólida? Vertigem não é o medo de cair, é outra coisa. É a voz do vazio debaixo de nós, que nos atrae e nos envolve, é o desejo da queda do qual nos defendemos aterrorizados."
Talvez haja um medo de cair, mas pode haver também um desejo de entrar em contato com algo novo, desconhecido, por quê não com a criação artística? Para algumas pessoas o processo de criação pode ser vertiginoso, aterrorizante ou extremamente sedutor ou ainda tudo junto.
Quando lidamos com a dança precisamos entender questões que envolvem transferência de peso, de apoios, dinâmicas de movimento, ocupação dos níveis...enfim uma série de conceitos que envolvem o ato de dançar. Nesse trabalho, lidamos com tudo isso e também com o entendimento de que cada um precisa suportar ou aguentar seu próprio peso. Ou seja, adquirimos a consciência do nosso peso quando temos que nos colocar fora do chão ou nos apoiar em algo que está fora do chão. Lidar com essa descoberta pode não ser tão simples como subir numa balança, mas cada um vai descobrindo como isso pode acontecer aos poucos.
A chegada da dança aérea no meu trabalho no Vocacional foi em 2011 no CEU Campo Limpo. Eu já estava trabalhando com técnicas aéreas há alguns anos e a dança e o ar já faziam parte da minha pesquisa individual e nos coletivos nos quais eu participei. Como o Campo Limpo oferecia essa possibilidade, em função de sua estrutura, resolvi propor aos vocacionados essa experiência. E foi incrível! Foi um momento em que pude abrir o meu olhar para novas questões que me inquietavam. Uma delas é como tornar o aprendizado de uma técnica difícil e muito específica em um momento de criação, pesquisa, ludicidade, jogo, prazer, concentração, foco e claro, dança! Como fazer com que a habilidade de utilizar o ar vire uma dança? Essas e outras questões ainda fazem parte da minha urgência no Vocacional, mas aos poucos fui percebendo que o que difere o corpo da dança aérea para o corpo da dança contemporânea é apenas o treinamento. Partindo desse lugar, a dança aérea fica possível a todos aqueles que queriam navegar num mar cheio de ondas, balanços e porque não, vertigem!
Com o próprio fazer fui percebendo que é possível trilhar esse caminho com muito prazer e diversão, sem abrir mão da perícia e do cuidado que é preciso ao se trabalhar fora do chão. Isso inclue desde o preparo daquele que monta os equipamentos, ou seja, eu como artista orientadora tenho o dever de oferecer toda a segurança no que diz respeito aos materiais utilizados, (faixas tubulares de escalada, mosquetões, giros e os aparelhos em si: tecido e lira) onde e como montá-los. Tendo essa parte sido resolvida, é importante fazer com que os vocacionados saibam dos riscos que correm, tenham consciência de como funciona o aparelho com o qual estão trabalhando e percebam, sobretudo, seus limites individuais.
Creio que tem sido uma experiência inédita e muito interessante, como podemos ver na fala dos vocacionados.
“a primeira vez que vi os aparelhos me senti uma criança novamente e a primeira sensação foi maravilhosa, nunca imaginei que poderíamos ter algo tão interessante e tão perto de casa. No início foi difícil mais aos poucos, fomos nos adaptando, entendendo o aparelho que estávamos utilizando, só posso completar que a experiência da Dança Aérea além de ser diferente é muito interessante. Testar as possibilidades de movimentações nos aparelhos, a leveza e as suas dificuldades. O meu aparelho preferido é o tecido, onde senti um complemento de movimentação além de ser muito bonito.” Renan Maragoni, 18 anos
“...Aqui eu me sinto eu mesma, de uma forma pura e absoluta, seja na sala ensaiando, no palco dançando ou atuando ou pendurada de cabeça para baixo. Este ano eu e minha turma estamos retomando algo que fizemos em 2011, que é a dança aérea. Talvez não haja palavras suficiente para descrever quão incrível é a sensação experimentada em aula, essa mistura de dança e circo me fascina de tal forma que quero agregar à minha futura profissão. Já havia feito circo antes e fiquei extremamente encantada com os aparelhos aéreos, em especial o tecido, é algo lindo de se ver e com muita emoção a se sentir, me apaixonei à primeira pendurada, porém no circo tudo é muito mais técnico, entretanto atrelado à dança há mais alma e envolvimento, creio que a coisa se torna mais viva e envolvente, sem contar que há outras pessoas junto e a interação humana dá mais sede e calor de inventar e fazer coisas novas. Outro ponto interessante é poder descobrir novas possibilidades corporais, novos músculos e novas dores, há uma espécie masoquismo, pois é inevitável não sentir dor ao usar os aparelhos aéreos, porém a experiência é tão boa que é bom sentir as dores ao descobrir um novo corpo, ao descobrir a dança, a lira, o tecido, ao descobrir novas possibilidades...”
(trecho do texto Vocação, criado por Tamara Figueiredo, que começou no Vocacional aos 14 e hoje tem 21)
“A dança aérea no meu ponto de vista é um misto de sensações....superação, liberdade, felicidade, dedicação, dificuldade, evolução, possibilidade. A cada aula vejo como essas sensações são importantes na minha vida, acho que me faz mais viva, me faz querer superar as dificuldades e sempre com a ajuda  da Mari e de todos, é sempre muito construtivo!! Eu simplesmente estou apaixonada por essa aula, de sentir até borboletas no estômago...” Bruna Cruz 25 anos
Uma outra questão que está sempre comigo gira em torno da fusão das linguagens. Como torná-las tão juntas ao ponto de não podermos separá-las em dança e circo? Esse é ainda um ponto na minha prática que sinto que algumas vezes se desmancha no ar! Como preprará-los para o desafio do peso, do seu próprio peso? Sobre essa questão metodológica, sinto que é preciso ir ouvindo os próprios vocacionados e juntar essas pistas com todo meu percurso de artista e educadora e aos poucos ir aperfeiçoando a metodologia.
Nesse percurso, parto sempre do chão, do nosso apoio vital. Os encontros começam nessa segurança e aos poucos vamos saindo devagar, deslocando pedaços de nós mesmos e percebendo que pesa! Umas partes mais que as outras, mas há sempre um esforço para sair do chão. Quanto mais partes, mais esforço. Daí sempre penso no que eu precisei quando me aventurei a voar, o que foi necessário acionar para que a tarefa de me suspender fosse possível, e com essa resposta eu busco uma tradução para a dança, crio um meio de se movimentar e conectando todo o corpo, aceno para a possibilidade de tornar outros corpos, corpos voadores. Assim vamos, uns voam mais rápido, outros tomam mais tempo, uns tem medo de virar de ponta cabeça, outros se descobrem crianças novamente, muitos sentem dores, mas se entregam. É lindo ver como ficam disponíveis e leves fora do chão, que dançam voando e que criam uma nova dança. Assim, dentro dessa perspectiva, os vocacionados vêm trazendo suas vontades, suas ideias criativas.
Esse ano tenho duas vocacionadas que já viveram isso em 2011, mas muitos outros estão experimentando pela primeira vez. Depois de 3 meses começam a trazer propostas para o direcionamento desse novo lugar que é o ar.
A primeira mostra de processo, realizada em outubro, se desenvolveu a partir da ideia do cuidar, cuidar do outro em seu sentido mais amplo, oferecendo apoio, carinho, um gesto...Assistimos ao filme Fale com Ela de Almodóvar e a partir daí vieram muitas outras questões e procedimentos que foram usados na criação do trabalho. Após essa primeira mostra resolvi reconfigurar um dos aparelhos e com isso outras imagens vieram e criamos um novo trabalho que nasceu da escuta de um novo jeito de se montar o tecido. Abandonamos os outros aparelhos e nos concentramos nessa nova exploração, pois cada configuração do tecido oferece possibilidades singulares.
Achei muito curioso que essa última criação da turma tenha surgido da observação das possibilidades que a nova montagem do tecido apresentou e não de uma ideia preconcebida na cabeça de alguém. Talvez isso seja um sinal de que começam a entender como funciona a nossa pesquisa e de que existem muitas formas de desenvolver um processo artísitico. Será que não é exatamente isso que importa?

Mariana Duarte (artista orientadora do Ceu Campo Limpo)
Equipe Centro-oeste
Coordenação: Yaskara Manzine

Referências bibliográficas
VIANNA, Klauss (2005) [1990].  A Dança. Em colaboração com Marco Antônio de Carvalho. São Paulo: Summus.
LABAN, Rudolf . Dança Educativa Moderna. Tradução de Lisa Ullman. São Paulo: Ícone, 1990.
KUNDERA, Milan. A insustentável Leveza do ser. Tradução de Teresa B. Carvalho da Fonseco. São Paulo: Nova Fronteira 63ª. Edição, 1983.

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