Qual será o tamanho do nosso voo?
Estar no Vocacional pode ser uma
experiência avassaladora em todos os sentidos. Eu já tive inúmeras e
diversificadas experiências nesses 6 anos de participação no programa. Há uns
dois anos, venho experimentando a possibilidade de se dançar fora do chão,
apoiando-se em equipamentos aéreos utilizados no circo e pesquisando como fazer
para transformar todo o processo, desde os primeiros desequilíbrios e quedas,
em dança.
A dança aérea é uma pesquisa que envolve aparelhos suspensos
nos quais podemos nos apoiar e sair do chão, alterando as relações de peso,
apoio e verticalidade, e consequentemente influenciando as qualidades de
movimento. É um trabalho
que não requer noções básicas das técnicas tradicionais circenses, nem tão pouco
um domínio de alguma técnica de dança. A pesquisa se desenvolve pouco a pouco junto com o
conhecimento de como funciona cada suporte aéreo. Uns trazem mais
possibilidades de giro, outros de balanço. Uns são flexíveis, outro duros,
podem também ter todas essas qualidades juntas. Geralmente suportam mais de uma
pessoa, o que possibilita o trabalho em grupo.
Nesse trabalho privilegia-se a pesquisa
de movimento sobre a virtuose ou a técnica pura, e os caminhos para criação de
movimento são desenvolvidos a partir de uma perspectiva de dinâmicas de
movimento, de técnicas de percepção do peso/gravidade, transferência apoios, ou
a partir de propostas da dança-teatro.
O fato de o corpo estar suspenso traz ,
inevitavelmente, uma técnica e um preparo para que se possa explorar as
possibilidades de movimentação no espaço aéreo. A ausência da técnica e do
preparo específico do circo podem dificultar o trabalho, mas são barreiras
transitórias que aos poucos vão sendo superadas, porque, de fato, a técnica não
é um fim nem um recurso expressivo no qual se apresenta uma estética do
virtuosismo que se observa no circo.
Nesse sentido, os escritos de Klauss
Vianna sobre a dança clássica (Vianna, 2005 [1990]) proprocionam ótimos
caminhos de reflexão, já que servem também para pensar a relação com a técnica
no circo versus no trabalho que acontece no Vocacional. Para ele,
"a preocupação excessiva com a técnica é prejudicial", e se reflete
num processo de criação (ou execução) de movimentos muito pautado pela forma.
Não à toa o ballet clássico, assim como a tradição circense, têm na
repetição da forma seus caminhos mais típicos de aprendizado: o aluno aprende
“truques”, ou “passos”, sempre a partir de um ideal de “execução correta”. O
movimento, portanto se reduz ao seu aspecto formal. Rudolf Laban formula algo
parecido:
“A maioria
das técnicas desenvolvidas têm em comum uma seleção mais ou menos limitada e
concisa de exercícios fundamentais para o domínio corporal. Isto faz com que
seja possível alcançar um alto grau de destreza na forma particular de
movimento. Muitas vezes, porém, ajustar
uma ferramenta e acondicionar o instrumento assumem tanta importância que
passam por cima da pesquisa do material de movimento e o material adquirido é
muito escasso” (Laban, 1990, p. 114)
De outro lado, não se trata de rechaçar
a técnica: o próprio Klauss Vianna pondera que a técnica [clássica] “não é só
isso”, é também um caminho para organizar fisicamente as emoções e conhecer o
corpo; desde que o bailarino a exercite com os sentidos alertas (e não pela
repetição mecânica) (ibidem, p. 30).
As propostas tanto de Vianna quanto de
Laban nos abrem outros ângulos possíveis a partir dos quais se pode mobilizar a
técnica, e nos permitem pensar em uma expressividade que é oriunda do próprio
modo de funcionamento do corpo, dos próprios caminhos que o corpo encontra para
executar “instruções corporais”, muito mais do que das formas finais. Essa
proposta é interessante, acima de tudo, por dar mais liberdade para a expressão
individual e para a singularidade dos corpos, ampliando, consequentemente, as
possibilidades de criação.
Uma das grandes qualidades desse trabalho está na ludicidade que ele
oferece, já que sair do chão, fazer pequenos voos ou giros em velocidade são
experiências que vamos perdendo quando deixamos de ser criança. Nessa pesquisa,
tudo isso é retomado e experienciado. Talvez para nós adultos essa sensação
possa estar conectada à sensação de vertigem a qual Milan Kundera, de forma
poética, define em A Insustentável leveza
do Ser.
"O
que é vertigem? Medo de cair? Mas porque temos vertigem num mirante cercado por
uma balaustra sólida? Vertigem não é o medo de cair, é outra coisa. É a voz do
vazio debaixo de nós, que nos atrae e nos envolve, é o desejo da queda do qual
nos defendemos aterrorizados."
Talvez
haja um medo de cair, mas pode haver também um desejo de entrar em contato com
algo novo, desconhecido, por quê não com a criação artística? Para algumas
pessoas o processo de criação pode ser vertiginoso, aterrorizante ou
extremamente sedutor ou ainda tudo junto.
Quando lidamos com a dança precisamos entender questões que envolvem
transferência de peso, de apoios, dinâmicas de movimento, ocupação dos
níveis...enfim uma série de conceitos que envolvem o ato de dançar. Nesse
trabalho, lidamos com tudo isso e também com o entendimento de que cada um
precisa suportar ou aguentar seu próprio peso. Ou seja, adquirimos a
consciência do nosso peso quando temos que nos colocar fora do chão ou nos
apoiar em algo que está fora do chão. Lidar com essa descoberta pode não ser
tão simples como subir numa balança, mas cada um vai descobrindo como isso pode
acontecer aos poucos.
A chegada da dança aérea no meu
trabalho no Vocacional foi em 2011 no CEU Campo Limpo. Eu já estava trabalhando
com técnicas aéreas há alguns anos e a dança e o ar já faziam parte da minha
pesquisa individual e nos coletivos nos quais eu participei. Como o Campo Limpo
oferecia essa possibilidade, em função de sua estrutura, resolvi propor aos
vocacionados essa experiência. E foi incrível! Foi um momento em que pude abrir
o meu olhar para novas questões que me inquietavam. Uma delas é como tornar o
aprendizado de uma técnica difícil e muito específica em um momento de criação,
pesquisa, ludicidade, jogo, prazer, concentração, foco e claro, dança! Como
fazer com que a habilidade de utilizar o ar vire uma dança? Essas e outras
questões ainda fazem parte da minha urgência no Vocacional, mas aos poucos fui
percebendo que o que difere o corpo da dança aérea para o corpo da dança
contemporânea é apenas o treinamento. Partindo desse lugar, a dança aérea fica
possível a todos aqueles que queriam navegar num mar cheio de ondas, balanços e
porque não, vertigem!
Com o próprio fazer fui percebendo que é possível trilhar esse caminho
com muito prazer e diversão, sem abrir mão da perícia e do cuidado que é
preciso ao se trabalhar fora do chão. Isso inclue desde o preparo daquele que
monta os equipamentos, ou seja, eu como artista orientadora tenho o dever de
oferecer toda a segurança no que diz respeito aos materiais utilizados, (faixas
tubulares de escalada, mosquetões, giros e os aparelhos em si: tecido e lira)
onde e como montá-los. Tendo essa parte sido resolvida, é importante fazer com
que os vocacionados saibam dos riscos que correm, tenham consciência de como
funciona o aparelho com o qual estão trabalhando e percebam, sobretudo, seus
limites individuais.
Creio que tem sido uma experiência inédita e muito interessante, como
podemos ver na fala dos vocacionados.
“a
primeira vez que vi os aparelhos me senti uma criança novamente e a primeira
sensação foi maravilhosa, nunca imaginei que poderíamos ter algo tão
interessante e tão perto de casa. No início foi difícil mais aos poucos, fomos
nos adaptando, entendendo o aparelho que estávamos utilizando, só posso
completar que a experiência da Dança Aérea além de ser diferente é muito
interessante. Testar as possibilidades de movimentações nos aparelhos, a leveza
e as suas dificuldades. O meu aparelho preferido é o tecido, onde senti um
complemento de movimentação além de ser muito bonito.” Renan Maragoni, 18 anos
“...Aqui
eu me sinto eu mesma, de uma forma pura e absoluta, seja na sala ensaiando, no
palco dançando ou atuando ou pendurada de cabeça para baixo. Este ano eu e
minha turma estamos retomando algo que fizemos em 2011, que é a dança aérea.
Talvez não haja palavras suficiente para descrever quão incrível é a sensação
experimentada em aula, essa mistura de dança e circo me fascina de tal forma
que quero agregar à minha futura profissão. Já havia feito circo antes e fiquei
extremamente encantada com os aparelhos aéreos, em especial o tecido, é algo lindo
de se ver e com muita emoção a se sentir, me apaixonei à primeira pendurada, porém
no circo tudo é muito mais técnico, entretanto atrelado à dança há mais alma e
envolvimento, creio que a coisa se torna mais viva e envolvente, sem contar que
há outras pessoas junto e a interação humana dá mais sede e calor de inventar e
fazer coisas novas. Outro ponto interessante é poder descobrir novas
possibilidades corporais, novos músculos e novas dores, há uma espécie
masoquismo, pois é inevitável não sentir dor ao usar os aparelhos aéreos, porém
a experiência é tão boa que é bom sentir as dores ao descobrir um novo corpo,
ao descobrir a dança, a lira, o tecido, ao descobrir novas possibilidades...”
(trecho
do texto Vocação, criado por Tamara Figueiredo, que começou no Vocacional aos
14 e hoje tem 21)
“A
dança aérea no meu ponto de vista é um misto de sensações....superação,
liberdade, felicidade, dedicação, dificuldade, evolução, possibilidade. A cada
aula vejo como essas sensações são importantes na minha vida, acho que me faz
mais viva, me faz querer superar as dificuldades e sempre com a ajuda da Mari e de todos, é sempre muito
construtivo!! Eu simplesmente estou apaixonada por essa aula, de sentir até
borboletas no estômago...” Bruna Cruz 25 anos
Uma outra questão que está sempre
comigo gira em torno da fusão das linguagens. Como torná-las tão juntas ao
ponto de não podermos separá-las em dança e circo? Esse é ainda um ponto na
minha prática que sinto que algumas vezes se desmancha no ar! Como preprará-los
para o desafio do peso, do seu próprio peso? Sobre essa questão metodológica,
sinto que é preciso ir ouvindo os próprios vocacionados e juntar essas pistas
com todo meu percurso de artista e educadora e aos poucos ir aperfeiçoando a
metodologia.
Nesse percurso, parto sempre do chão,
do nosso apoio vital. Os encontros começam nessa segurança e aos poucos vamos
saindo devagar, deslocando pedaços de nós mesmos e percebendo que pesa! Umas
partes mais que as outras, mas há sempre um esforço para sair do chão. Quanto
mais partes, mais esforço. Daí sempre penso no que eu precisei quando me
aventurei a voar, o que foi necessário acionar para que a tarefa de me
suspender fosse possível, e com essa resposta eu busco uma tradução para a
dança, crio um meio de se movimentar e conectando todo o corpo, aceno para a
possibilidade de tornar outros corpos, corpos voadores. Assim vamos, uns voam
mais rápido, outros tomam mais tempo, uns tem medo de virar de ponta cabeça,
outros se descobrem crianças novamente, muitos sentem dores, mas se entregam. É
lindo ver como ficam disponíveis e leves fora do chão, que dançam voando e que
criam uma nova dança. Assim, dentro dessa perspectiva, os vocacionados vêm
trazendo suas vontades, suas ideias criativas.
Esse ano tenho duas vocacionadas que
já viveram isso em 2011, mas muitos outros estão experimentando pela primeira
vez. Depois de 3 meses começam a trazer propostas para o direcionamento desse
novo lugar que é o ar.
A primeira mostra de processo,
realizada em outubro, se desenvolveu a partir da ideia do cuidar, cuidar do
outro em seu sentido mais amplo, oferecendo apoio, carinho, um
gesto...Assistimos ao filme Fale com Ela
de Almodóvar e a partir daí vieram muitas outras questões e procedimentos que
foram usados na criação do trabalho. Após essa primeira mostra resolvi
reconfigurar um dos aparelhos e com isso outras imagens vieram e criamos um
novo trabalho que nasceu da escuta de um novo jeito de se montar o tecido.
Abandonamos os outros aparelhos e nos concentramos nessa nova exploração, pois
cada configuração do tecido oferece possibilidades singulares.
Achei muito curioso que essa última
criação da turma tenha surgido da observação das possibilidades que a nova
montagem do tecido apresentou e não de uma ideia preconcebida na cabeça de
alguém. Talvez isso seja um sinal de que começam a entender como funciona a
nossa pesquisa e de que existem muitas formas de desenvolver um processo
artísitico. Será que não é exatamente isso que importa?
Mariana Duarte (artista orientadora
do Ceu Campo Limpo)
Equipe Centro-oeste
Coordenação: Yaskara Manzine
Referências bibliográficas
VIANNA, Klauss (2005) [1990]. A Dança. Em colaboração com
Marco Antônio de Carvalho. São Paulo: Summus.
LABAN, Rudolf . Dança Educativa Moderna. Tradução de Lisa Ullman. São
Paulo: Ícone, 1990.
KUNDERA, Milan. A
insustentável Leveza do ser. Tradução de Teresa B. Carvalho da Fonseco. São
Paulo: Nova Fronteira 63ª. Edição, 1983.
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