Ensaio de pesquisa: Guarapiranga 1
Equipamento: CEU Guarapiranga
Artista Orientadora: Mônica
Rodrigues
Coordenador de equipe: Paulo
Fabiano
Período: Março/abril/maio de 2013:
Western na zona sul
Não foi bem um começo consciente.
O equipamento que eu escolhera mudou a revelia os horários, e toda uma
programação pessoal foi pro espaço. Ingerência estranha. Interpreto isso como
um “sinal” da trajetória 2013. Todo o ano se desenvolveu sob o estigma da
incompreensão do programa. Mais uma vez? Como no ano passado naquele equipamento
X? Respirei fundo, fundíssimo. Aceitei então a única opção que restara, a que
ninguém havia desejado, Guarapiranga.
Conhecer o equipamento,
desbravá-lo, tenho espírito aventureiro, aprecio ares novos. Mas com os pés no
chão e ouvidos atentos.
O que vi? O que vejo? Estou num
filme-western de Sérgio Leoni??? Pois parece muito, muito. Cenário: equipamento
deserto. Pessoas: não há. Guardas: indagam quem sou e não sabem responder prá
onde posso ir, ou com quem falar. Silêncio entrecortado pelos ônibus que
margeiam a entrada principal do equipamento. Apenas eles, os ônibus, deslocando
os quase-vocacionados prá outras áreas da cidade. Com voz sumida eu pedi: parem
aqui! Se acheguem!
Um rápido e alegre intermezzo
Conheci o coordenador (Rodrigo) que
me abriu portas e sorrisos. Ufa! Não estou num western desabitado. Traçamos e
trocamos desejos, expectativas, idéias, esperanças. Agora sim, um começo
afetivo e lúcido. Já nestes primeiros encontros, apresentou-me à Gisleide, uma
diretora de um grupo teatral do bairro, a Cia Mamolengos, que, bastante guerreira,
insiste sua capacidade criadora num lugar com poucos recursos e escasso
atendimento do poder público. Mais caldo grosso pro angu, comecei a fervilhar
junto com as possibilidades que se abriam na estrada quase deserta. Os
parceiros, coordenador e esta diretora, foram fundamentais. Mas ouvi cedo
demais a voz de Lennon que dizia: The
dream is over.
John, por onde eu começo de novo agora?Foi o quê? Só sonho ou poeira dissipada no vento? Não foi só a minha organização e programação pessoal que foi pro espaço, quando isso acontece os efeitos gerados acontecem em cadeia, em cascata, repercutindo indefinidamente. O coordenador foi “despedido”. A referência acolhedora, a única, sumiu, evaporou-se, ou melhor, evaporaram-na.
É a famosa entressafra cultural,
a tal mudança de gestão, que atinge negativamente aqueles a quem mais se
destina o programa, a quem eu mais espero encontrar. Todo o trabalho anterior, os processos e os contatos com grupos e
vocacionados na região se perderam. Aqueles rostos que eu vislumbrava
chegando no equipamento também evaporaram. Permaneceram em suas casas, ou
continuaram a lotar os ônibus, ainda distantes do meu calor. Fingi não
acreditar na continuação do roteiro western, mas este só se aprofundou (trilhas
sonoras diversas povoam minha mente sem parceiros que dialoguem com esta).
Correção oportuna
Num filme western, quer dizer,
num BOM filme western, você tem alguns ingredientes indispensáveis para ele ser
considerado bom, imperdível, um clássico, enfim, o tipo de filme que nunca
envelhece e que faz você não desgrudar os olhos da tela/TV, acompanhando ao
lado do coração dos personagens o desenrolar da trama. Os ingredientes básicos,
na minha modesta opinião de leiga, são: bons personagens, centrais e
secundários, complexos, ardentes, suaves, diferentes e complementares, que
atuam num jogo de tensão de forças, enriquecendo a ação dramática. Música
perfeita, que dá o ritmo do filme, e te faz galopar junto, prender a respiração
ou saltar do trem antes de cair no abismo, quando chega o instante exato (como
em O bom, o mau e o feio). Cenário indiscutivelmente belo: a paisagem natural
sempre dialoga com o interior do filme, dos seres, e amplia a abordagem
realizada das questões humanas. Nossa solidão, pequenez, heroicidade,
fragilidade e poesia se expandem, ao infinito.
Correção feita
Presumo que a única qualidade de western que
observei no equipamento se deu em minha imaginação populosa: o clima de
desolação, abandono, cidade-fantasma à espera de seus bons personagens para
gerar a tensão de forças (aqui compreendida como pura criação, vida, estado
onde podem existir e se manifestar as diferenças).
Pois o CEU Guarapiranga possui um entorno desfavorável para o empoderamento
e acesso da comunidade aos seus processos. Sua porta principal é em frente á
uma estrada, e que às 18hs, já está completamente deserta e pouquíssima
iluminada (talvez por isso não se realizem eventos após este horário,
tornando-o mais sombrio e desértico). Para entrar no CEU, a comunidade precisa
dar a volta num quarteirão enorme, o que desanima pais, crianças, idosos e outras
pessoas.
O acesso através da rua de cima, que com certeza poderia trazer em cheio
toda a comunidade com fluidez e praticidade, não foi criado no equipamento por
“medo de assalto”. Isso justifica o tratamento que é dispensado à população
mais pobre pelos governos, e que eventualmente se reproduz nas práticas sociais
do bairro: eles são marginalizados, tratados a priori como “suspeitos”, mas na
hora de eventos, são convocados em massa,
pois dão um “número bom” de público. A consequência é óbvia: exceto a festa
junina que trouxe todas as famílias das EMEI/EMEF e alguns poucos eventos de
grande porte do esporte que reúnem seus praticantes, todos os outros eventos
culturais do CEU, são esvaziados e pouco conhecidos pela maioria.
Estas duas questões na fase inicial do programa no CEU Guarapiranga
prejudicaram bastante o começo dos trabalhos: o início tardio do Programa (na
segunda quinzena de abril), e a mudança de gestão no CEU. Mesmo realizando
contatos com a Artista Orientadora do ano anterior (Fabiana Monsalú) e mesmo
através dos números de telefones e e-mails disponíveis, por conta da
desorganização do início, as pessoas ou não estavam mais interessadas, ou
buscaram fazer outras coisas (atividades não artísticas/suas profissões/outros
estudos, etc.).
Trabalho de formiguinha
Iniciei uma série-maratona-caminhada pelo bairro para realizar a divulgação
do programa e espalhar mel em volta do
equipamento. Nas escolas e demais espaços do entorno, não havia nenhum
conhecimento do que era o Programa Vocacional. Mas por um bom tempo, também não havia uma “ponte”, uma pessoa no equipamento,
que as acolhesse, para “falar do mel”, tirar dúvidas e dar informações. O CEU não parecia,
estava mesmo “abandonado” e assim ficou por diversos meses até o final de junho,
não houve uma coordenação que respondesse às demandas do projeto. Na prática
isso significou que ou não havia uma pessoa responsável para abrir um espaço
para os encontros, ou os funcionários do CEU não sabiam “quem era” a AO, e
foram necessárias diversas explicações à pessoas diferentes. Somente o
coordenador regional da equipe do Vocacional, Paulo Fabiano, acompanhou passo a
passo este começo difícil, atenuando o meu isolamento nas minhas questões/angústias
e no fazer artístico.
MAS E AÍ, GENTE?
Desde o segundo dia de orientação, apareceu uma personagem curiosa: uma
jovem de 24 anos, portadora de necessidades especiais. Sua qualidade de
especial no nível mental, não me incomodou nem um pouco. Sei muito bem que a
normalidade é a doença... E ninguém debaixo de uma lupa escapa de ser motivo de
estranheza, bizarrice ou riso. Encarei como um desafio e como UMA PESSOA. Uma
pessoa, que se dispõe a sair de casa, a estar lá no horário, a não entender
nada de teatro e mesmo assim, OUSAR DESEJAR. Isso prá mim é muito, faz o poema
por si só. Estava muito claro que a mãe, que sempre acompanhava a filha,
buscava uma “ocupação” para ela, uma terapia ocupacional chegou a dizer, e foi
orientada a procurar algum serviço no CEU pelo pessoal do CAPS. (é
definitivamente um jogo de empurra-empurra dos poderes públicos! Quantas
garotas e garotos como ela, com ou sem necessidades especiais, estão boiando
entre uma margem e outra da cidade, sem chegar á travar encontros,
indefectivelmente restando na zona do meio do rio??)
A DESPEITO DE TUDO, ELES
E a despeito de tanto western mal contado, não é que foram aparecendo os
primeiros vocacionados? Veio algum pelos cartazes? Nenhum. Foi o vento
promissor que trouxe a Jaqueline, a Giovana, a Thamires, a Talita, depois a
Taune, o Michael Douglas (estrela americana no Guarapiranga? Uau!) e alguns
vocacionados flutuantes que chegavam, faziam alguns encontros, se apaixonavam,
mas não conseguiam permanecer devido á outros compromissos. Todos estes
flutuantes continuaram a aparecer até o final do ano, realizando curtíssimas
visitas, provando que havia também um elo afetivo estabelecido, ainda que
frágil. Isso é importante num bairro desértico como aquele, com raras ou nenhuma
opção aos jovens de lazer e/ou cultura, pois pode significar frutos criativos e
diversas primaveras para todos os envolvidos num futuro vindouro.
Os vocacionados formaram uma turma que desejava aprender “o básico do
teatro” e também queriam dizer coisas ao mundo através dele. Ora, o que é o
“básico” do teatro? Cada um no meio artístico vai ter uma resposta diferente.
Creio que, prá mim, não é certamente saber quem foi Ésquilo (embora seja
estimulante e prazeroso) ou se posicionar no palco. A questão é autoconhecer-se.
Mergulhar prá dentro (e para fora, também). Gosto disso. Mas sem esquizofrenia
delirante. Um nível tranquilo de imersão nos desejos, nos medos, nas expectativas,
nos protestos silenciosos, na fala do corpo. Tivemos momentos para detectar esta
desconfiança com relação ao outro, afinal de contas, por que nos mete tanto
medo estar diante de alguém? Reações imprevisíveis dos vocacionados responderam
que estamos adestrados para não reconhecer a potencialidade do encontro e
sermos “iguais á todos”. Através da mídia, do consumo e diversas formas de
escapismo, buscam fazer-nos acreditar que relacionar-se é perigoso, e basta
termos uma imagem de alguém sociável, para ao menos na aparência, o sermos,
numa tentativa de mascarar as solidões.
Mas afinal, nem só de
filosofia vive HamletE as cenas surgidas continham um alto grau de surrealismo e delírio crítico sobre o cotidiano das pessoas. Desta forma, a pesquisa com a turma se concentrou em questões como violência, repetição da rotina, adestramento, consumo, solidão, bullyng, mercado, desejo, potências individuais e transformações coletivas. Era a época dos protestos em SP, e isso trouxe mais orégano e repercussão em nossa mozzarella. E nenhum destes temas, absolutamente nada disso era diferente do que vivenciávamos ali, desde o inicío pedregoso no CEU, na compreensão do Vocacional ali dentro, e das disponibilidades muito escassas que tínhamos de lidar (tanto de pessoas como de recursos).
A Cia Mamolengos
Conhecer o grupo e sua sede no seio do Jd. Boa Sorte, foi realmente encontrar
a flor de lótus. Com uma pequena ressalva: o entorno da flor de lótus não é
lixo, são as PESSOAS do bairro imenso do Guarapiranga, trabalhando,
sobrevivendo, lutando com sua inteireza no mar adverso de oportunidades. A
única degradação que existe é a da desatenção com um bairro que merecia mais
espaços públicos de cultura, mais facilidades arquitetônicas, de transporte, de
serviços vários. Enfim, o único grupo da região que se interessou em receber
orientação (não encontrei outro!), foi uma grande injeção de ânimo. Também
planejamos ações em paralelo com outros grupos vocacionados e os vocacionados
no CEU. Mas a orientação aconteceu por poucos meses, pois além de algumas
dificuldades imprevistas de organização do grupo, a falta de estrutura e diálogo no CEU acabaram por
desanimá-los e os afastavam de suas necessidades artísticas do momento. Nossos
encontros foram intensos. A sua pesquisa sobre loucura e cotidianidade dialogava muito com experiências artísticas da minha bagagem e igualmente com aspectos trazidos nas cenas e discussões pelos vocacionados no CEU. Mas isso
também pode florescer num outro momento. Não poderia?
Mônica Rodrigues
Nenhum comentário:
Postar um comentário