"Brasília é construída na linha do
horizonte. – Brasília é artificial. Tão artificial como devia ter sido o mundo
quando foi criado. Quando o mundo foi criado, foi preciso criar um homem
especialmente para aquele mundo. Nós somos todos deformados pela adaptação à
liberdade de Deus. Não sabemos como seríamos se tivéssemos sido criados em
primeiro lugar, e depois o mundo deformado às nossas necessidades. Brasília
ainda não tem o homem de Brasília. – Se eu dissesse que Brasília é bonita,
veriam imediatamente que gostei da cidade. Mas se digo que Brasília é a imagem
de minha insonia, vêem nisso uma acusação; mas a minha insonia não é bonita nem
feia – minha insonia sou eu, é vivida, é o meu espanto. Os dois arquitetos não
pensaram em construir beleza, seria fácil; eles ergueram o espanto inexplicado.
A criação não é uma compreensão, é um novo mistério. – Quando morri, um dia
abri os olhos e era Brasília. Eu estava sozinha no mundo. Havia um táxi parado.
Sem chofer. – Lucio Costa e Oscar Niemeyer, dois homens solitários. – Olho
Brasília como olho Roma: Brasília começou com uma simplificação final de
ruínas. A hera ainda não cresceu. – Além do vento há uma outra coisa que sopra.
Só se reconhece na crispação sobrenatural do lago. – Em qualquer lugar onde se
está de pé, criança pode cair, e para fora do mundo. Brasília fica à beira."
Clarice Lispector. "Brasília:
1962".
ENSAIO-FICÇÃO
Apneia da Fragmentação
Peça dividida em
"n" atos para ser encenada em
__/__/____.
A peça se passa
em um tempo descontínuo, presente remoto entre o passado e o futuro, onde pássaros
raríssimos cantam a cada aurora do dia e adormecem em silêncio acordando na
manhã seguinte e assim sucessivamente (mediante a audição de seus cantos ao
início de cada ato).
Propõe-se poucos
diálogos, priorizando-se as rubricas a fim de permitir maior desenvolvimento
artístico-pedagógico do coletivo de atores envolvidos da peça. A peça é
proposta para um grande elenco.
Alguns
personagens não estão elencados abaixo e portanto não aparecem no decorrer da
encenação. Não existe nenhuma razão especial para isso, em geral se deve ao
fato de terem estado presentes apenas no prólogo, no período inicial da peça.
Existe um vazio proposital de rota dramatúrgica, como uma era mítica suspensa
no tempo.
Não é clara a origem
de cada personagem, sabe-se apenas que suas atuações são absolutamente
interdependentes, sendo assim passam a peça toda em um jogo no qual a pergunta
e/ou ação de um estimula a resposta e/ou ação do outro e assim por diante,
sempre envolvendo o grande elenco.
Possivelmente
outros personagens estão presentes neste jogo mas o autor tem desconhecimento
sobre os mesmos, sendo assim estes não podem ser apresentados de modo
verossímil ao leitor/ público.
O autor deixa
uma última recomendação ao leitor atento, de ler esta ficção como se observasse
a composição de um quadro, não porque acredite que com esta pintura dará conta
de toda a história da arte, mas bem ao contrário, acredita apenas conseguir
enxergar um efêmero, breve e quase invisível quadrante de uma grande tela.
Observação
final: Esta peça não está terminada. Trata-se de obra aberta que pode ser finalizada
por quaisquer pessoas que queiram dar continuidade à mesma (a partir da última
frase escrita), assim como a peça também pode sofrer alterações na ordem das
cenas, ou ainda receber a inserção de novas cenas que somem às já aqui
apresentadas, modificando-se esta primeira proposta.
Elenco/personagens
A1
A2
A3
A4
A5
A6
A7
A8
ASS
AV
CEN
CES
COLEGAS
CP
Locações/cenários
Apartamento
Corredor
Lugar nenhum
Marginal
Pinheiros
Marginal Tietê
Redondo
Sala de
divisórias
Sala fechada
Teatro
NDA
Instâncias físicas e/ou conceituais
E
V
Sentimentos básicos
Amor, ternura,
ausência existencial, tristeza, excitação, generosidade, calma, intensidade,
prudência, indignação, paixão. Observação: Outros sentimentos poderão ser
adicionados de acordo com cada personagem, proposição do ator e relação com o
contexto da cena.
Ato 1
Prólogo
Locação: NDA
Luz âmbar sobe
em fade-in
Ouve-se o canto
dos pássaros raríssimos
Vê-se uma imagem
idílica com o grande elenco suspenso (todos estão suportados por um fio preso
ao teto de NDA) Pouco a pouco todos caem suavemente com asas coloridas abertas.
Luz desce me
fade-out.
Cena 1
Plano aberto: a
cena se passa em um trecho devastado de terra onde se ouve o murmúrio do vento
em um som agudo e contínuo. O ambiente parece frio e inóspito.
Plano fechado:
Sala fechada vazia.
Ouve-se o ranger
da porta abrindo. Entra CES.
Corta.
Cena 2
Primeiro plano
dos rostos de CP, CEN e CES.
Sala fechada
Os três atores
abrem as agendas e pegam suas canetas em um gesto cotidiano. Se entreolham.
Falam da vida durante poucos minutos. CES anota freneticamente qualquer coisa
em um caderno, CEN ouve CP. Todos conversam e escrevem juntos durante algum
tempo entusiasticamente. Os três devem se sentir plenos de energia e iniciam
uma fértil discussão sobre meios e modos de produção, sobre educação, cultura,
performance. Aparência saudável.
Toca o telefone.
CEN atende e marca uma reunião para o dia seguinte pela manhã com E.
Cena 3
Marginal Tietê.
Cena ao fundo de
uma manifestação que se encontra parada em uma larga avenida não longe dali.
CEN está dentro
de um carro com um fone de ouvido falando com A3. Explica a situação à A3 que
lhe diz que passa por uma situação semelhante na região de E.
Cena 4
Marginal
Pinheiros
CES se encontra
em situação idêntica à CEN na Cena 3. Fala com A4. (seguir as mesmas instruções
da Cena 3, relacionando CES e A4).
Cena 5
Sala fechada -
dia
CES conversa com
E. Tomam café. Os dois personagens levam uma conversa agradável. São
apresentados o funcionamento de V e de E. Toca o telefone. Ninguém atende.
"E" conta que aquele era seu primeiro dia ali e que está disposto a
ajudar no que for preciso. Ambos se servem de mais uma xícara de café e CES se
dirige ao teatro.
Cena 6
Teatro - não
fica evidente ao público se é dia ou noite.
Não há ninguém.
CES então se dirige à Sala de divisórias no andar acima.
Cena 7
Sala de
divisórias - dia
Música - sons
que ecoam de um jogo de basquete
A7 e AV estão em
grande animação. Vê-se uma cartolina imensa cheia de anotações. Participam
desta cena CES, A7 e AV que discutem sorridentes o que estão preparando. Todos
encenam algo utilizando objetos e sonoridades.
Cena 8
Lugar nenhum -
noite
A4 telefona à
CES. Explica que está em Lugar Nenhum junto a E. Este último diz que está com
uma programação. A4 e CES mostram compreensão à situação pois observam que de
fato E está disposto a fazer o impossível para acolhê-los naquela noite mas que
de fato se vê sem saída. A4 se dirige ao corredor. AV segue A4.
Corredor - noite
AV e A4 iniciam
com uma roda e conversam sobre a semana anterior, criam uma proposta para
aquele dia no corredor tentando adaptar o programa criado em Sala fechada junto
com CP, CEN, CES e A1-8.
Cena 9 - dia
Sala fechada
Encontram-se
ASS, A 1-8 , CP, CEN, CES e Colegas.
Nota-se um
sentimento de comunhão, todos os personagens se abraçam e cantam juntos durante
aproximadamente 10 minutos. Em seguida ouve-se vozes dissonantes que ora se
sobrepõem, ora apenas uma é ouvida, em seguida outra e assim por diante. Esse
coro repete o jogo/partitura de comunhão e dissonância de vozes e abraços
durante algum tempo, trazendo um mesmo ritmo para a cena.[1]
Cena 10 - noite
Apartamento
CES telefona a A6.
Combinam um programa para o dia seguinte, discutindo calorosamente o que
ocorrera com AV e E na semana anterior. Desligam o telefone. CES senta-se no
sofá de seu apartamento, fecha os olhos. Em voz alta, como se dissesse para si
mesmo, se dá conta do quão feliz está pois finalmente faz algo em que acredita,
percebe que tem bons parceiros e que tudo vai bem. CES levanta, faz um chá.
Toma o chá.
Cena 11
Sala fechada -
dia
Encontram-se
A1-8, CP, CEN e CES
Alguns se
encontram deitados no chão, outros lêem um poema, outros dançam. Após algum
tempo uma discussão é iniciada a partir das ações de cada um. Formam duplas,
compondo o quadro cênico de modo aleatório, as vozes das duplas são ouvidas
simultaneamente. As duplas se abraçam e se despedem, indo ao encontro de E.
Cena 12
Redondo - dia
Coro com A1-7,
Colegas, E.
Todos dançam
juntos, cantam, conversam sobre construção de subjetividades, parcerias entre a
cultura e a educação, projetos de vida e traçam metas comuns para os próximos
meses.[2]
Black-out
Cena 13
Locação: NDA -
não se sabe se é dia ou noite
Luz âmbar sobe
em fade in.
Aparentemente
nenhum personagem ou cenário está em cena. No decorrer desta ausência de
personagens, cenários e objetos é gerado no público um sentimento de vazio
existencial que pouco a pouco se transforma em indignação porém, passado um
breve tempo, um a um do Elenco vai adentrando a luz agora já a pino e um novo
sentimento de paixão, intensidade, prudência e excitação começa a ser criado.
Longa pausa do
grande elenco.
Luz desce em
fade-out.
Breu - Suspensão
do tempo
Ato
2
Luz sobe em
fade-in.
Ouve-se o canto
dos pássaros raríssimos.
Cena 1
Para ser
continuada.[3]
O mistério das coisas? Sei lá o que é mistério!
O único mistério é haver quem pense no mistério.
Quem está ao sol e fecha os olhos,
Começa a não saber o que é o sol
E a pensar muitas coisas cheias de calor.
Alberto Caieiro
[1] A Cena 9 pode ser repetida
como uma partitura de ações e textos ao longo de todos os atos da peça sempre
que o grande elenco democraticamente assim decidir. No geral ela obedece ao
mesmo ritmo criado desde sua primeira aparição.
[2] É desejável que os dramaturgos se preocupem em retomar esta cena em algum momento no decorrer dos próximos atos.
[3]
Nota
em 1ª pessoa: O que é a
coordenação de equipe do Vocacional Interlinguagens dentro do Programa
Vocacional? Me parece ser um exercício de criação, apreciação, orientação e
convite à reflexão sobre nossas ações artístico-pedagógicas (algo que fui
descobrindo e me apaixonando ao longo do ano), é o espaço para prepará-las
coletivamente para em seguida colocá-las a teste, recriando-as novamente. O que
importa enfim não é estar ali com os vocacionados? Mas estar como, qual o
programa? O que é criado e mobilizado ali? O modo - forma e conteúdo - a partir
do qual instauramos um processo junto aos vocacionados é construído desde
aquela mesa de reunião às segundas de manhã. A fragilidade na qual entramos
neste segundo semestre (tornando nossos encontros quase ocasionais) contaminou
não só nossos anti-seminários e nosso programa coletivo mas também a
orientação, naturalmente. É condição essencial a conexão entre a reunião
artístico-pedagógica e a orientação nos equipamentos, é o que nos dá coerência.
No entanto me parece que é justamente nesse momento frágil que nos é exigida
uma dose extra de coragem. Como é o trabalho na ponta? O que é a ponta, onde começa?
Acredito que o plano total da ficção não é um caminho linear, não existe uma
única seta, uma única direção, enxergo algumas trajetórias neste plano. Nesse
fluxo e anti-fluxo que criamos, são ainda esses colapsos meu combustível para
continuar e é na tomada de consciência da ruína das formas caducas e esvaziadas
de sentido, da fragmentação da nossa percepção, que podemos igualmente nos
perguntar para onde vamos, o que queremos, o que nos pertence e quais nossos programas:
nos deparamos assim com um solo fértil para ser refeito, com a capacidade de
ser reconstruído. Se quisermos, podemos olhar e ver apenas a terra devastada ou
então vislumbrar daí a mudança e a transformação. Isso me parece ser
interlinguagens.
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