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segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Meditações... (ou como me aproximei de Foucault) - Ipojucan Pereira

Meditações... (ou como me aproximei de Foucault).

Ipojucan Pereira – Coordenador da Equipe Sul 1 de Teatro.




Eu aqui diante da tela do computador, os dedos sobre o teclado, a espera de algo que se manifeste no mais íntimo do meu ser e que ganhe contornos por meio da escrita... Uma escrita de mim mesmo e para mim mesmo(?) Observo São Jerônimo, debruçado sobre os seus papéis a escrever incessantemente... O invejo pela facilidade com que os seus pensamentos conquistam a empunhadura da mão, passam à pena embebida em tinta e ganham a página em branco.

Tento me ensaiar. Meditar sobre essa atitude tão necessária ao Vocacional, mediadora entre o pensamento e a experiência, tanto na vivência, quando nos reunimos para refletir, quanto na reflexão, quando nos propomos a vivenciar a criação...




Mediação. Dispositivo. Meio. Uma finalidade em si mesma, um jogo lúdico cuja única regra é o se dobrar, desdobrar, redobrar... infinitamente. Como o manto sinuoso de São Jerônimo, que nas suas intermináveis dobras vermelhas envolvem o seu corpo, já um tanto ressequido pela idade e pelo esforço da escrita também interminável, que enruga e estria a pele em dobras e ondulações. É Deleuze quem observa a harmonia da arte barroca a se desenvolver a partir dessa célula autônoma que é a dobra, que se volta sobre si mesma, dobrando-se novamente, e novamente se desdobrando pra se dobrar mais uma vez num processo infinito de vestir um corpo, um elemento qualquer, ou uma realidade finita.  




O corpo de São Jerônimo parece brotar dessa corola de dobras autônomas, ou talvez ser tragado para dentro desse torvelinho, dessa espiral incessante de pesados volumes do manto que o envolve. Mas o tronco que emerge/submerge está capturado pelo dispositivo da escrita, o olhar e a mente, a atenção e o espírito estão mergulhados nas linhas que se comprimem e se empilham em camadas sobrepostas nas folhas de papel. Ás vezes a pena é sustenta no ar, a espera do ajuste entre o êxtase que se experiencia e o pensamento que nomeia o saber da experiência.

Que estado é esse? Que atitude é essa que me faz olhar a cena de duas vocacionadas, ainda iniciantes, da Casa de Cultura de Santo Amaro, repleta de clichês e formalizações – que fariam o crítico teatral mais chinfrim ficar escandalizado com tamanho amadorismo –, e mesmo assim, me colocar a espera de ser capturado por algo?... Me lembro que nesse dia o meu espírito não estava tranqüilo, e nem meu corpo, que padecia de uma enfermidade que me alterava os humores. E esse estado que eu era (ou que sou eu), além da persona coordenador de que estava investido, e da vasta cultura teatral que me enchia de certezas, e também do maravilhamento infantil que alimenta o meu ser artístico... Todas essas dobras estavam lá, diante de duas pessoas comuns, que procuravam contar uma história banal sobre uma mãe que perdera a sua filha no zumzumzum da feira-livre...

Não busquei ser condescendente ou mesmo complacente com as questões da cena das duas. Não havia da minha parte uma atitude de olhar para as vocacionadas como se estivesse diante do “bom selvagem”. Queria apenas me ensaiar, me colocar no presente da situação e para o presente da situação. Queria desviar o olhar da face da Medusa – dessa Gestalt fixa e enrijecedora – para outras questões da cena, tais como o tipo de solução estética encontrada para dar forma a determinado conteúdo, ou no porquê de determinadas escolhas no que se refere aos modos e meios empregados na composição.

E depois de escapar daquilo que me hipnotizava e aprisionava o olhar – o pensamento em si mesmo –, e prestar atenção em outras coisas que pareciam ser insignificantes, retornar com o escudo/espelho de Perseu e colocá-lo diante do monstro, para que a máscara monstruosa de Medusa incorporasse um pouco dos medos e inseguranças que envolvem qualquer processo de criação.     

Agamben vai falar desse jogo, dessa prática que perdeu a sua finalidade puramente funcional, emancipada de sua relação com o Cronos devorador, com o tempo que apara e elimina todas as arestas, divagações e incertezas que atrapalham a síntese de um objetivo pré-fixado. É como se colocar nesse hiato em que se encontra São Jerônimo, nesse instante de indecisão da pena suspensa no ar a desperdiçar gotas de tintas no chão, a se entreter entre as miríades de pensamentos e emoções que podem ser recombinados, cruzados, dobrados e desdobrados ao infinito. No momento em que a pena risca o papel, um sem número possibilidades se encerram, devido ao tipo de formalização que todo processo criativo padece ao obedecer a um tempo diacrônico.

     



Trazendo também as meditações de Bondía para essa conversa, eu aqui me vejo nessa tentativa de tornar a funcionalidade dessa escrita inoperante, de alcançar uma potência ensaística, de registrar um conhecimento que não cabe no discurso científico e que também não se presta apenas a informar... Tentar conservar ainda nesse meu texto a imagem de São Jerônimo, que traz nas camadas de seu corpo os anos de aprendizado, que constituem o seu saber, adquirido no modo como foi respondendo ao que lhe foi acontecendo e no modo como foi dando sentido ao acontecer do que lhe aconteceu. Se faz necessário assim um discurso que destrua as suas próprias certezas, para que eu possa retornar a ele portando o escudo/espelho de Perseu, para instaurar novamente a ludicidade necessária a recriação do meu próprio conhecimento.





Um coordenador São Jerônimo. É assim que me sinto. Ao ser atravessado pelas falas dos artistas-orientadores de minha equipe nas reuniões de pesquisa-ação, pelas falas dos outros coordenadores nas reuniões de formação para mediadores... Com a pena suspensa sobre o papel, o olhar vago, a escuta pronta, o espírito vigilante sobre as próprias emoções... Com meio corpo a oscilar entre a submersão nas dobras da experiência e a formalização da escrita... Um São Jerônimo ancião, aparentemente carcomido pelo tempo, cansado e desgastado pelo peso da tarefa que tomou para si, mas também com o rosto em júbilo, com a expressão de êxtase pela oportunidade de se colocar neste entre-lugar da criação.

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