Meditações... (ou como me aproximei de
Foucault).
Ipojucan Pereira – Coordenador da Equipe Sul 1 de Teatro.
Eu aqui diante
da tela do computador, os dedos sobre o teclado, a espera de algo que se
manifeste no mais íntimo do meu ser e que ganhe contornos por meio da
escrita... Uma escrita de mim mesmo e para mim mesmo(?) Observo São Jerônimo,
debruçado sobre os seus papéis a escrever incessantemente... O invejo pela facilidade
com que os seus pensamentos conquistam a empunhadura da mão, passam à pena embebida
em tinta e ganham a página em branco.
Tento me ensaiar.
Meditar sobre essa atitude tão necessária ao Vocacional, mediadora entre o
pensamento e a experiência, tanto na vivência, quando nos reunimos para
refletir, quanto na reflexão, quando nos propomos a vivenciar a criação...
Mediação.
Dispositivo. Meio. Uma finalidade em si mesma, um jogo lúdico cuja única regra
é o se dobrar, desdobrar, redobrar... infinitamente. Como o manto sinuoso de
São Jerônimo, que nas suas intermináveis dobras vermelhas envolvem o seu corpo,
já um tanto ressequido pela idade e pelo esforço da escrita também
interminável, que enruga e estria a pele em dobras e ondulações. É Deleuze quem
observa a harmonia da arte barroca a se desenvolver a partir dessa célula autônoma
que é a dobra, que se volta sobre si mesma, dobrando-se novamente, e novamente
se desdobrando pra se dobrar mais uma vez num processo infinito de vestir um
corpo, um elemento qualquer, ou uma realidade finita.
O corpo de São
Jerônimo parece brotar dessa corola de dobras autônomas, ou talvez ser tragado
para dentro desse torvelinho, dessa espiral incessante de pesados volumes do
manto que o envolve. Mas o tronco que emerge/submerge está capturado pelo
dispositivo da escrita, o olhar e a mente, a atenção e o espírito estão
mergulhados nas linhas que se comprimem e se empilham em camadas sobrepostas
nas folhas de papel. Ás vezes a pena é sustenta no ar, a espera do ajuste entre
o êxtase que se experiencia e o pensamento que nomeia o saber da experiência.
Que estado é
esse? Que atitude é essa que me faz olhar a cena de duas vocacionadas, ainda
iniciantes, da Casa de Cultura de Santo Amaro, repleta de clichês e
formalizações – que fariam o crítico teatral mais chinfrim ficar escandalizado
com tamanho amadorismo –, e mesmo assim, me colocar a espera de ser capturado
por algo?... Me lembro que nesse dia o meu espírito não estava tranqüilo, e nem
meu corpo, que padecia de uma enfermidade que me alterava os humores. E esse
estado que eu era (ou que sou eu), além da persona coordenador de que estava
investido, e da vasta cultura teatral que me enchia de certezas, e também do
maravilhamento infantil que alimenta o meu ser artístico... Todas essas dobras
estavam lá, diante de duas pessoas comuns, que procuravam contar uma história
banal sobre uma mãe que perdera a sua filha no zumzumzum da feira-livre...
Não busquei ser
condescendente ou mesmo complacente com as questões da cena das duas. Não havia
da minha parte uma atitude de olhar para as vocacionadas como se estivesse
diante do “bom selvagem”. Queria apenas me ensaiar, me colocar no presente da
situação e para o presente da situação. Queria desviar o olhar da face da
Medusa – dessa Gestalt fixa e enrijecedora – para outras questões da cena, tais
como o tipo de solução estética encontrada para dar forma a determinado
conteúdo, ou no porquê de determinadas escolhas no que se refere aos modos e
meios empregados na composição.
E depois de
escapar daquilo que me hipnotizava e aprisionava o olhar – o pensamento em si
mesmo –, e prestar atenção em outras coisas que pareciam ser insignificantes,
retornar com o escudo/espelho de Perseu e colocá-lo diante do monstro, para que
a máscara monstruosa de Medusa incorporasse um pouco dos medos e inseguranças
que envolvem qualquer processo de criação.
Agamben vai
falar desse jogo, dessa prática que perdeu a sua finalidade puramente
funcional, emancipada de sua relação com o Cronos devorador, com o tempo que
apara e elimina todas as arestas, divagações e incertezas que atrapalham a
síntese de um objetivo pré-fixado. É como se colocar nesse hiato em que se
encontra São Jerônimo, nesse instante de indecisão da pena suspensa no ar a
desperdiçar gotas de tintas no chão, a se entreter entre as miríades de
pensamentos e emoções que podem ser recombinados, cruzados, dobrados e
desdobrados ao infinito. No momento em que a pena risca o papel, um sem número
possibilidades se encerram, devido ao tipo de formalização que todo processo
criativo padece ao obedecer a um tempo diacrônico.
Trazendo também
as meditações de Bondía para essa conversa, eu aqui me vejo nessa tentativa de
tornar a funcionalidade dessa escrita inoperante, de alcançar uma potência
ensaística, de registrar um conhecimento que não cabe no discurso científico e
que também não se presta apenas a informar... Tentar conservar ainda nesse meu
texto a imagem de São Jerônimo, que traz nas camadas de seu corpo os anos de
aprendizado, que constituem o seu saber, adquirido no modo como foi respondendo
ao que lhe foi acontecendo e no modo como foi dando sentido ao acontecer do que
lhe aconteceu. Se faz necessário assim um discurso que destrua as suas próprias
certezas, para que eu possa retornar a ele portando o escudo/espelho de Perseu,
para instaurar novamente a ludicidade necessária a recriação do meu próprio
conhecimento.
Um coordenador
São Jerônimo. É assim que me sinto. Ao ser atravessado pelas falas dos artistas-orientadores
de minha equipe nas reuniões de pesquisa-ação, pelas falas dos outros
coordenadores nas reuniões de formação para mediadores... Com a pena suspensa
sobre o papel, o olhar vago, a escuta pronta, o espírito vigilante sobre as
próprias emoções... Com meio corpo a oscilar entre a submersão nas dobras da
experiência e a formalização da escrita... Um São Jerônimo ancião,
aparentemente carcomido pelo tempo, cansado e desgastado pelo peso da tarefa
que tomou para si, mas também com o rosto em júbilo, com a expressão de êxtase
pela oportunidade de se colocar neste entre-lugar da criação.
Nenhum comentário:
Postar um comentário