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segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

A ESCUTA EM FOCO NO TEATRO VOCACIONAL - Laís Marques

CEU Alvarenga

A ESCUTA EM FOCO NO TEATRO VOCACIONAL


[...] Somos um grau de potência, definido pelo poder de afetar e ser afetado. Mas jamais sabemos de antemão qual é nossa potência. Do que somos capazes. É sempre uma questão de experimentação. Não sabemos ainda o que pode o corpo, diz Espinosa, só o descobriremos no decorrer da existência. Ao sabor dos encontros.
Peter Pal Pelbart

Os desafios lançados no Programa do Teatro Vocacional[ii] são o eixo para essa breve reflexão que procura problematizar a escuta no contexto teatral. O projeto da prefeitura de São Paulo, a partir do cruzamento entre as diferentes ações (orientações, reuniões e discussões com base no seu material norteador), estimula que o artista-orientador se lance numa experiência junto aos vocacionados, instaurando “processos emancipatórios” cujo foco maior é a produção de subjetividades por meio de práticas artístico-pedagógicas. Nesse caso, a perspectiva do “mestre ignorante”,[iii] tanto quanto a do “nomadismo”,[iv] aposta na potência dos encontros, sendo que as relações instauradas nesse contexto não são hierarquizadas e tampouco visam à formação exclusivamente técnica do ator.
Essa perspectiva pedagógica exige do orientador uma escuta específica e se assemelha, em grande medida, ao trabalho do ator no momento da improvisação, já que, no improviso, ele deve ter disponibilidade para reagir sem ideias prévias, no exato momento do acontecimento. A clareza sobre as estratégias e os parâmetros dessa habilidade de escuta em ação é essencial ao jogo. Saber ouvir, portanto, o que acontece no tempo/espaço, assim como saber lançar o bambu na hora correta e jogar a peteca com o tônus apropriado, para citar alguns dos aquecimentos em teatro, se torna um indício essencial para que o artista, tanto quanto o ser humano em geral, aprimore sua sensibilidade e sua inteligência, tornando-as, ainda, elementos indissociáveis.

Um dos artigos que primeiro chamou a nossa atenção discorre sobre a “escuta sensível” na educação (CERQUEIRA, 2006). São citadas duas autoridades da área, o educador Paulo Freire, que fala de uma “pedagogia da autonomia”, e René Barbier, que define a escuta como uma “presença meditativa”. Comentando sobre o decisivo papel da escuta na educação, em obra sua, Freire afirma:

Escutar é obviamente algo que vai mais além da possibilidade auditiva de cada um. [...] Significa a disponibilidade permanente por parte do sujeito que escuta para a abertura à fala do outro, ao gesto do outro, às diferenças do outro. [...] A verdadeira escuta não diminui em mim, em nada, a capacidade de exercer o direito de discordar, de me opor, de me posicionar. (FREIRE, 2000, p. 135)

Uma segunda fonte de inspiração é o sentido da escuta numa sessão de análise, quando a qualidade do silêncio, das pausas, das lacunas do discurso, além do ato falho, da livre associação e do fluxo de ideias, alavancados por alguma demanda “vital”, acabam detonando infinitas possibilidades de interpretações para o analista. Caberia ao artista da cena, porém, realizar concomitantemente os dois papéis que a clínica distingue: o do analista e o do analisado. Porque ele se escuta e, ao mesmo tempo, percebe a sua “fala”, que são as suas ações e interferências no espaço-tempo da cena.
Nosso propósito, contudo, é discutir a ideia propriamente da escuta-ação, estratégia metodológica que pretende que a orientação junto aos vocacionados, seja não apenas feita com base no trabalho do ator, mas também pensado ou melhor, traduzida ou mesmo reinventada sob novos, e até então inexplorados, pontos de vista. Em síntese, a escuta-ação refere-se à:
– Escuta de si: escutar a consciência sobre a chegada no ambiente de criação, o estado geral do corpo, as expectativas, exigências e desafios gerais do processo e os desejos envolvidos, e escutar como todos esses elementos se assemelham ou não aos do coletivo;
 Escuta do outro: escutar a consciência sobre a chegada no ambiente de criação, o estado geral do corpo, as expectativas, exigências e desafios gerais do processo e os desejos envolvidos, e escutar como todos esses elementos se assemelham ou não aos do próprio ator;
 Escuta das fontes e dos materiais: escutar como eles se ligam aos vocacionados e ao trabalho (e à humanidade no sentido mais amplo) e escutar suas relações com outras obras artísticas, com depoimentos colhidos, com a vida (a ênfase no trânsito vida-arte), etc.;
Além disso, a escuta-ação inclui: a escuta geral dos acasos e sincronicidades (no caso do trabalho com improvisação); a escuta do previamente elaborado (no caso do trabalho com composição); a escuta da instrução (objetividade tanto da proposta quanto do entendimento); a escuta na seleção, na execução e na observação do que o ator-vocacionado faz; a escuta na seleção, na execução e na observação; a escuta do vazio, do silêncio, da não ação e do não saber.
Esse neologismo por nós sugerido, composto pela combinatória de duas ideias frequentes no trabalho do ator, foi desenvolvido, aqui, em consonância com as ideias de Giorgio Agamben sobre o uso dos dispositivos na perspectiva contemporânea.[v] O estudioso italiano critica a maneira como a natureza ambígua de todo dispositivo pode atrelar a ele um “desejo demasiadamente humano de felicidade, e a captura e subjetivação deste desejo em uma esfera separada” (AGAMBEN, 2005, p. 14). Contra as formas ilimitadas dessa exploração pelo atual estágio do capitalismo, portanto, caberia a profanação desses disparadores, ou seja, a restituição dos seus próprios mecanismos de controle e funcionamento ao uso comum, acessível a todos os interessados.
Como o ambiente pedagógico é visto, aqui, como um sistema aberto, dialógico, passível de ser organizado segundo as necessidades de cada encontro, o seu estudo sugere, então, a profanação dos dispositivos de Agamben, visando à escuta-ação: a ação de incorporar e reinventar uma determinada técnica só é possível na medida em que esse procedimento cênico é transcriado pelos atores-vocacionados, dentro de um contexto específico. Essa ideia também pode ser aproximada da perspectiva do ato responsivo de Bakhtin, quando a ação é realizada sem nenhum álibi, exigindo que o artista-orientador, tanto quanto seus colaboradores assumam uma postura de fato exploratória, inventiva e livre diante das suas ferramentas técnicas e conceituais. O professor e bailarino Klauss Vianna afirma:

Quando uma técnica artística não tem um sentido utilitário, se não me amadurece nem me faz crescer, se não me livra de todos os falsos conceitos que me são jogados desde a infância, se não facilita meu caminho em direção ao autoconhecimento – então não faço arte, mas apenas um arremedo de arte... Conheço apenas a forma, que é fria, estática e repetitiva e nunca me aventura na grande viagem do movimento que é a vida e que sempre tenta nos tirar do ciclo neurótico da repetição. (VIANNA, 2005, p. 72)
                                                                                 
Assim, mais do que a reprodução indistinta de supostas regras teatrais, a escuta-ação pode criar as condições para que emerja um metabolismo própria a cada coletivo, de acordo com o horizonte pretendido e o fôlego artístico assumido ludicamente pelo conjunto. Baseando-se, por exemplo, no comportamento da criança diante do mundo, vale “observar e reter, repetir e verificar, associar o que se busca aprender com aquilo que já se conhece, fazer e refletir sobre o que se fez” (RANCIÈRE, 2010, p. 28). Assim, “aprende-se sozinho e sem mestre explicador” (Ibid., p. 28). Essa qualidade em escutar cada proposta estética ou treinamento proposto, cada processo e cada experiência criativa permitiria, assim, “aprender qualquer coisa e a isso relacionar todo o resto, segundo o princípio de que todos os homens têm igual inteligência” (Ibid., p. 37).
É a capacidade de silenciar a si mesmo e ao espaço de trabalho que produz um estado de presença dilatada, no qual as conexões e transformações dos hábitos e padrões se tornam presentes. Nesse sentido, a escuta-ação visa à capacidade do ator-vocacionado, tanto quanto do artista-orientador, em saber produzir a diferença dentro do processo criativo.
escuta-ação incorpora, ainda, o ponto de vista do atuador, como afirma Renato Ferracini:

Um atuador deve estar em constante treinamento ou, em outras palavras: um performador deve estar na busca constante de fissurar seus limites de ação procurando uma potência possível de expressão, seja em uma sala de trabalho, seja no ensaio de um espetáculo, seja dentro do próprio espetáculo, seja em um happening ou uma performance. No espetáculo e na ação performática se treina, assim como no cotidiano pode se encontrar estados cênicos. O importante é encontrar potências de experiências que produzem vivências e que em si mesmas mantêm sua força vital: experiências como força motriz que lançadas como virtuais potentes na memória dos atuadores serão sua fonte inesgotável de organicidade e vida em toda sua força de diferenciação. (FERRACINI, 2009, p. 133, grifos nossos)

Numa perspectiva complementar, também é possível observar como a escuta na dança atua como uma noção estratégica, que gera “estados de atenção” em relação a si mesmo e aos demais:

Gerar este estado de prontidão a partir da escuta é disponibilizar o corpo para que ele não se isole e consiga organizar-se em direção a alguma coisa, interagindo com um fluxo dos acontecimentos ao redor de si, que se envolve com o meio ambiente e com os estímulos vindos não só do corpo, mas das relações estabelecidas com o ambiente. (BASTOS, 2003, p. 19)

Nesse estado de “codependência”, corpo e ambiente estão num processo contínuo de contaminação, num tipo de interação que conecta diferentes instâncias internas (mental, neuronal, etc.) ao próprio espaço onde a ação se dá. Quando se trata de um ambiente artístico-pedagógico, essa relação de codependência é bombardeada por inúmeros atravessamentos que visam confrontar ideias e possibilidades, exigindo que as mais diversas escolhas sejam feitas e que o conhecimento seja testado diretamente no corpo, um espaço privilegiado para que tais intervenções se tornem uma combinatória de movimentos – ou seja, a dança propriamente dita.
Essa perspectiva trazida pela dança, assim como numa improvisação teatral, implica, enfim, num ato mesmo de coragem, num arriscar-se sem garantias prévias:

[...] Quanto mais experimentamos, mais treinamos o corpo a digerir noções básicas que lidam com seleção, abdicação, construção, invenção e configuração. Sempre é um aprendizado a partir do qual resolvemos, no espaço, a escolha adequada entre várias possibilidades de direções. (Ibid., 2003, p. 32)

Para a estudiosa da dança Christine Greiner a qualidade de escuta está, inclusive, diretamente ligada às ações, que significa dançar/atuar num estado alerta específico:
Atento a si, ao meio e ao instante presente, o corpo do ator abre-se simultaneamente à experiência imediata e às situações pré-estruturadas, como convém ao jogo teatral. Esse estado de atenção não dirigida abre caminho para a vivência do aqui-agora, uma espécie de estado passivo-alerta, que também pode propiciar, e por que não, um caminho para as ações dramáticas justas. (GREINER; AMORIM, 2003, p. 133)

Finalmente, apresenta-se abaixo uma seleção de itens, por assim dizer, multiparadigmáticos para a escuta-ação atualmente em fase de experimentação e desenvolvimento junto ao Programa Vocacional:

– trânsito dinâmico entre arte e vida;
– uma dramaturgia do encontro semanal ensaística, in process;
– a atuação como um estado permanente de jogo: radicalização do momento presente, gosto pelo precário, pelo acaso, pelas sincronicidades;
– relações horizontalizadas entre os participantes;
– o artista-orientador como um provocador;
– a utilização mínima e exploração máxima dos materiais cênicos;
– a música, a trilha, o figurino e os demais elementos se friccionam com a performatividade dos atores-vocacionados e compõem junto com ela;
– obra = (s)obra.[vi]

REFERÊNCIAS  
AGAMBEN, Giorgio. O que é um dispositivo? Revista Outra Travessia, n. 5, UFSC, Santa Catarina, 2005.

BAKHTIN, Mikhail. Para uma filosofia do ato responsável. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010.

BONDÍA, Jorge. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, n. 19, 2002.
BONDÍA, Jorge. O ensaio e a escrita acadêmica. Revista Educação & Realidade, Rio Grande do Sul (UFRGS), n. 28, jul.-dez. 2003.

CERQUEIRA, Teresa, O professor em sala de aula: reflexão sobre os estilos de aprendizagem e a escuta sensível. PSIC – Revista de Psicologia da Vetor Editora, v.7, n. 1, 2006, pp. 29-38. Disponível em:

COELHO, Teixeira Coelho. Apresentação. In: MOSTAÇO, Edélcio et al (Orgs.). Sobre performatividade. Florianópolis: Letras Contemporâneas: 2009. pp. 7-10.
FÉRAL, Josette. Por uma poética da performatividade: o teatro performativo. Revista Sala Preta, São Paulo (ECA-USP), v. 8, n. 1, 2008.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. São Paulo: Paz e Terra, 2000.

GREINER, Christine; AMORIN, Cláudia (Orgs.). Leituras do corpo. São Paulo: Annablume, 2003.
GREINER, Christine; KATZ, Helena. Corpo e processos de comunicação. Revista Fronteiras – Estudos midiáticos, São Paulo (UNISINOS), v. 3, n. 2, 2001.

GREINER, Christine. Lições de dança 3: a natureza cultural do corpo. Rio de Janeiro: UniverCidade, 2002.

______. O corpo: pistas para estudos indisciplinaresSão Paulo: Annablume, 2005.


MORIN, Edgar. Educar na era planetária: o pensamento complexo como método de aprendizagem no erro e na incerteza humana. São Paulo: Cortez Editora, 2003.

RANCIÈRE, Jacques. O mestre ignorante. Belo Horizonte: Autêntica, 2010.

VIANNA, Klauss. A dança. São Paulo: Summus, 2005.




[i] Por Laís Marques. Agosto / 2013.
[ii] A autora deste artigo trabalha como artista-orientadora no CEU Alvarenga. O material norteador está disponível em:
[iii] Segundo o material norteador, o “mestre ignorante” é um autor de inquietações: “[...] Um pesquisador/perguntador [...], que se re-conhece [...], pronto à experiência da autoria de suas próprias inquietações.” (conferir link acima, sem paginação)
[iv] Para o citado programa, o habitar nômade “pretende ser capaz de [...] produzir novos territórios, físicos e imaginários, na cidade [...]. Esta produção [...] não é construção, mas é sim movimento, diálogo em perpétuo trânsito, viagem e errância.” (conferir link acima, sem paginação)
[v] Em recente conferência no Brasil, Agamben afirmou que o dispositivo é “qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes. Não somente, portanto, as prisões e os manicômios [...], mas a linguagem mesma, que é talvez o mais antigo dos dispositivos [...].” (AGAMBEN, 2005, p. 13)
[vi] “Como prefiro dizer, a obra é a sobra, aquilo que costumeiramente se identifica como ‘obra’ [...] nada mais é que o vestígio de alguma coisa muito maior que quase literalmente não deixa rastro”. (COELHO, 2009, p. 8) 

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