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segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Oriendançar – quando o corpo está presente



Artista-Orientadora: Isis Andreatta


Vocacional Dança - Equipe Centro-Oeste - CEU Uirapuru


Coordenadora: Yaskara Manzini













Ou seja, em que medida podemos nos construir um olho de Lászlo, 

subir com ele ao mirante da ilha, não só para conseguir acompanhá-lo

"terapeuticamente", mas também para poder usufruir desse panorama

que supomos ser o seu (...)” PELBART (1993:66)


O que preparo para o encontro de hoje? Preparo-me...
Vou [venho] de peito aberto, tateando em mim uma espécie de “não saber” das coisas, localizando o meu corpo em um estado de instabilidade e com a sensação angustiosa e positiva de enfrentar o desconhecido com entusiasmo.
Começar no Vocacional já é em si uma experiência de ser ignorante. Aquilo que apareceu nas minhas mãos para nortear me deixa totalmente desnorteada e, no entanto, move-me intensamente por isso; a solidão no equipamento faz com que eu escute minha própria respiração, ora ofegante ora profundamente dilatada e tranquila; o encontro com as inúmeras e diferentes expectativas (as minhas, as de cada vocacionado, as da administração do CEU, dos colegas de equipe, da coordenação) me proporcionam esse tal de “jogo de cintura” fundamental; a distância física e de realidade do equipamento fazem com que eu me aproxime cada vez mais dos meus interesses e desejos. Essas e tantas outras “novidades de cada dia” fazem do trabalho no Vocacional uma urgência necessária que exige prontidão e envolvimento.
O propósito desse escrito é mapear a instância do efêmero na atividade artístico-pedagógica, discutir sobre o estar presente, reconhecer a atemporalidade como um dispositivo potencializador dos processos com os vocacionados e passar a contaminar a prática com o conhecimento gerado pela intuição, aquele “não oral”, da experiência, do invisível, de um modo que eu apelidei de “oriendançar”. Para dar luz à discussão farei uso de algumas contribuições do filósofo Peter Pál Pelbart coletadas do ensaio “A nau do Tempo-rei” (1993) em que ele apresenta uma discussão a respeito do tempo no contexto da loucura e que pode vir a contribuir muito com o pensamento e atuação do Programa Vocacional. 
 
Quando você está presente?
Existe um “problema” de público. É preciso divulgar o Programa no entorno do CEU Uirapuru, pensar estratégias e abrir portas para que alguns suspeitos interessados em dança se aventurem junto comigo:
- Vamos fazer uma aula aberta na ETEC1 ? Você faz uma prática com eles, demonstra como funciona o Vocacional Dança, conversa com os adolescentes e depois divulga o horário das suas aulas?
- Isso, como se fosse uma aula-show, pra que todos saiam de lá empolgados com a dança e você trave um diálogo direto com os alunos de lá.
- Sim, vamos.
Fui. Chegando lá o (mal)entendido foi realizar a atividade com todos os alunos simultaneamente, ou seja, um encontro com cerca de 280 adolescentes. Faço meu (re)planejamento às pressas já consciente que se trata de estruturar “bóias” caso precise tomar um ar durante o mergulho em apnéia que estava me propondo a fazer. Ofereceram-me uma caixa de som, um microfone, uma quadra de futsal, 50 minutos e uma pequena multidão. Estar presente foi uma questão de sobrevivência.
Não somente em situações limites como a descrita anteriormente, percebo que a qualidade de abertura ao tempo presente é uma poderosa ferramenta para a construção de um ambiente de criação entre vocacionado e orientador. É preciso estar junto, com o corpo, atento o suficiente para cada possibilidade de conexão e entregue o suficiente para permitir-se experimentar de verdade.

(…) É um ponto que corresponde ao jorrar do tempo. Deveríamos

 poder estar ali onde começa o tempo, e com ele a possibilidade de 

alguma forma, de alguma decisão, deixar jorrar o tempo para que 

possa surgir o bom momento de se fazer alguma coisa.” (PELBART, 

p.35,1993)


Não se trata de uma entrega ingênua ao imediato, do risco por si só ou de um “se vira nos 30”2. O interessante no trabalho de orientação é quando existe empenho na construção de um ambiente cuja atmosfera é a da investigação, onde as tentativas alimentam a troca com os vocacionados e mantém o encontro pulsante.
Esse espaço que existe entre o planejado e o vivido é justamente o espaço do possível, do invisível, por onde jorra o tempo, a oportunidade de emancipação, o lugar de onde se descobre, de onde geram perguntas, a fissura, o escape, o ar puro que atravessa pulmões sufocados de certezas...é quando o corpo diz.
Fazer uma pergunta sobre o que realmente não se sabe é antes de tudo uma curiosidade aguçada por um aqui/agora. (material norteador) Chamaria essa provocação do nosso Material Norteador de uma “prontidão ignorante” e que precisa estar presente na prática do artista-orientador. O desafio é oferecer-se ao espaço-tempo do imprevisível com um compromisso ético e, consequentemente, estético; tal como oferecer à intuição o mesmo status de validade que se (pré)determina pertencer exclusivamente em relações meramente conteudista entre o mestre e o aprendiz.

O desafio é propiciar as condições para um tempo não controlável

, não programável, que possa trazer o acontecimento que nossas 

tecnologias insistem em neutralizar. Pois importa, tanto no caso do 

pensamento como da criação, mas também no da loucura, guardadas 

as diferenças, de poder acolher o que não estamos preparados para 

acolher, porque este novo não pôde ser previsto nem programado, 

pois é da ordem do tempo em sua vinda, e não em sua antecipação. 

 (PELBART, p.36, 1993) 

 


Para cair de cabeça no desconhecido é preciso desconhecer-se um pouco. Para “acolher o que não estamos preparados para acolher” não basta apenas teoria, formação, técnicas, muito menos uma lista de procedimentos. Para instigar a (re)descoberta do corpo (e do mundo) através da dança é preciso dançar junto. Orientar dançando é reconhecer o seu corpo como ignorante, um corpo que descobre fazendo, que não se satisfaz com a distância e a observação, que se inquieta pelo movimento e através dele, um corpo que se joga – um corpo que oriendança!
Estimular um ambiente de inquietações com os vocacionados é, antes de mais nada, assumir-se como um corpo ignorante, um “desconhecedor” de suas intensidades, estados, impulsos, conexões e, ao mesmo tempo, um interessado na descoberta desse universo invisível e paradoxal do corpo, recheado de incertezas e impurezas que contradizem um sistema corporal mecanicista e imperante e sugerem a nós experimentar uma lentidão que não seja impotência, uma diferença de ritmos que não seja disritmia, onde os movimentos não ganhem sentido apenas pelo seu desfecho.

BIBLIOGRAFIA

PELBART, Peter Pál - “A nau do tempo-rei: sete ensaios sobre o tempo da loucura” - Rio de

 Janeiro: Imago Ed., f 993.


 
FARINA, A. DELMANTO, I et alii – material norteador Programa Vocacional





1 Escola Técnica Estadual Uirapuru
2 Expressão popular que tem origem no programa do Faustão da Rede Globo onde pessoas competem sua capacidade de realizar diversas habilidades durante apenas trinta segundos.

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