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quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Um processo sensível para a história e outros procedimentos que quebram o vidro - Renato - Olido

Um processo sensível para a história e outros procedimentos que quebram o vidro.



Renato Vasconcelos
AO Dança - Galeria Olido



São dois os pontos de partida para desenvolvimento da pesquisa artística direcionada para orientação das turmas do Vocacional Dança na Sala Vitrine da Galeria Olido, um treinamento físico direcionado para o corpo cênico, realizado dentro de um recorte muito específico, que são as tendencias da dança moderna, e o universo poético e sensorial influenciado pela artista brasileira Lygia Clark.
Dois pontos que podem funcionar como rios de muitos afluentes, as vezes similares e as vezes antagônicos. Esses afluentes estão ligados as questões políticas, filosóficas, ideológicas, estéticas e históricas e também estarão relacionados aos princípios básicos da pedagogia do Programa Vocacional.
A escolhar pelo treinamento a partir de abordagens da dança moderna americana, se dá por dois fatos, o primeiro está ligado a demanda dos próprios vocacionados, pois os primeiros inscritos para os encontros de dança do Vocacional eram profissionais, que já estão acostumados com as técnicas de dança moderna e desejavam aproximar-se da minha orientação para uma troca de conhecimentos a cerca do assunto “dança moderna” e suas práticas corporais.
Todavia a minha orientação não pretendia aprofundar as bases da dança moderna americana, em termos de exercícios práticos, pois a minha formação técnica é bastante hibrida e por outro lado as premissas do Programa não visam tal desenvolvimento.
O segundo fato é histórico. A dança moderna americana encontrou em São Paulo um celeiro de artistas interessados em suas técnicas e a partir delas esses artistas construíram outras tantas técnicas, que foram favoráveis a história da dança contemporânea nesta cidade. (SIQUEIRA, 2006; pp. 104-5)
Sendo que Célia Gouvea, Gícia Amorim, Dulce Pessoa, Ruth Rachou, Claúdia de Souza, Sonia Mota, entre outros, fazem parte do quadro de artistas que estão ligados as tendencias técnicas oriundas da América do Norte e que de alguma forma fizeram parte da minha formação como artista, cidadão bailarino.
As questões técnicas da dança moderna e suas várias abordagens não estão limitadas a simples exercícios de treinamento físico mecanizado. Afinal como em qualquer outra vanguarda artística, a dança moderna está atrelada aos ideais de mudança dos paradigmas clássicos. E para que esses ideais culminem em arte é preciso que os envolvidos no processo cultivem forças interiores muito profundas, do ponto de vista humano, assim como a força de uma paixão, ou o sentimento de revolta diante da injustiça.
Essas forças e esses sentimentos foram corporificados pelos mestres dança moderna, Martha Graham, José Limón, Merce Cunningham, Alwin Nokolais, Hanya Holm entre outros. Cada um trouxe para si e para os bailarinos de suas companhias elementos de movimentação que fossem capazes de expressar o que eles pensavam, então as técnicas eram frutos de ideologias, de paixões e de uma necessidade imensa de mudar a realidade.
Ainda que eu e os vocacionados não consigamos juntos realizar os exercícios mais difíceis de uma técnica, nós tínhamos que nos apoiar em elementos gerais, presentes nas abordagens da dança moderna, para nos mobilizarmos criativamente.
Esse talvez seja um primeiro ponto de intersecção entre a abordagem do corporal, a inspiração em Lygia Clark e a postura política adotada pelo Programa Vocacional, que seria a emancipação.
Mas qual emancipação? Se atentarmos para as premissas pedagógicas do programa, entenderemos que essa emancipação está ligada a uma necessidade de mudança do comportamento geral do brasileiro, que sendo um povo colonizado culturalmente foi se tornando um povo dependente. Para que aconteça uma mudança no quadro político e social que nos assola é preciso uma tomada de consciência de si, dos outros e da nossa história, sendo assim, o material norteador do programa aponta:

Para o conceito de emancipação, objetivo que envolve toda e qualquer ação do Programa Vocacional, partimos da distinção elaborada por Paulo Freire. Para este educador, o ser humano com ser ético e consciente de sua infinita não conclusão, não é vítima de um destino contra o qual não pode lutar, mas é um ser que, coletivamente constrói uma história e é por ela construído. O ser humano seria, por natureza, livre, mas poderia não ter esta liberdade respeitada, mantendo-se aprisionado por condições sociais e culturais externas e impostas. (Proposta artístico-pedagógica: Material Norteador. São Paulo: Vocare – Revista do Vocacional. Ediçao comemorativa dos 10 anos, 2011.)

A principio seria incongruente falar de emancipação através do fazer artístico abordando as questões ligadas a cultura da dança norte-americana. Ocorre que o surgimento dessas danças foi fruto de mudanças sociais no começo do século XX, quando a Revoluçao Industrial ganhava seu ápice, e tais mudanças interferiram de tal modo nas produções artísticas de diversas linguagens (MARIBEL, 1989, p. 133), que para mim, como orientador de dança, as abordagens dança moderna servem como treinamento físico e como referencial de reflexão das mudanças que vem ocorrendo no nosso país.
Algumas questões para a pesquisa pedagógica durante o ano seria como aliar a ciência desenvolvida por Martha Graham, umas das líderes da dança moderna americana, que inspirou a maior parte dos coreógrafos dos EUA, que consiste em “três pontos essenciais: inspiração-expiração, memória motora e movimento percutante, isto é, poderoso movimento interrompido no seu auge”, o “cair e recuperar-se de Doris Humphrey, outra grande expoente da dança moderna americana”. (MENDES, 1985; pp. 67) e mais as associações e dissociações de tronco e pernas, música e dança que foram feitas por Merce Cunningham (AMORIM, 2000; pp.1000).
Aliar esses elementos físicos tinham o objetivo de dialogar com o objetivo maior do Programa Vocacional, que é instaurar processos criativos emancipatórios. Noutro ponto os processos criativos estão associados a expressão e a expressão está associada a um “tempo-espaço”, que não está neutro de história.
Se somos frutos dessa história, revê-la nos nossos corpos significa “ressignificar” e também refletir. As atitudes, gestos e posturas da dança moderna americana também fazem parte da nossa própria história da dança. E é só a partir da experimentação que o indivíduo consegue refletir e transformar. Nenhuma dança, seja brasileira, americana ou africana, ficou parada no tempo como obra de museu. O ser humano estava sempre mexendo nela e não deve ser diferente dentro de um programa que pretende a emancipação do indivíduo através de práticas artísticas que o levem a refletir sobre sua condição no mundo. Experienciar proporciona ferramentas para mexer e mudar.
Mas é a partir de Lygia Clark que fica possível lançar um outro olhar sobre os processos criativos, Clark será aquela inspiração artística e teórica que proporcionará uma ideia de não arte e uma desvinculação com a história. A professora Maria Alice Milliet analisando a obra da artista mineira, diz: “Existe em Clark uma crença nos recursos intrínsecos do homem, mas desidealizada. Não há modelo, nem norma: o que acontece é o processo de expressão e ao mesmo tempo expressão do processo.” (1992; pp 156)
Então nesse caso tanto faz os processos históricos, uma vez que, o que é intrínseco ao homem está dissociado de qualquer panorama histórico, com isso Ligya Clark lança a luz necessária para as premissas pedagógicas do Programa no tocante a valorização do processo. E indo mais fundo, quando a artista brasileira, pertencente ao movimento Neo
Concreto da década de 60, inverte o papel do artista que produz para o que propõe, ela traz à tona uma ideia de arte que não deve ser fruída, nem usada, mas experienciada “com todo prazer ou dor desse conhecimento que emerge num vir-a-ser corporificado e socialmente articulado.” (MILLIET, 1992; pp. 156).
É possível que a dança cênica esteja num vir-a-ser corporificado e socialmente articulado, mas para os cidadãos artistas envolvidos no Programa Vocacional , seja vocacionado ou orientador, tudo deve ser experienciado, sem objetivo de imitação ou perpetuação da tradição, mas para a instauração de um processo de alteridade, subjetividade e coletividade.
Realizar coletivamente pequenos exercícios pre elaborados com base em técnicas modernas pode gerar um sentimento de massificação a primeira vista, mas com certeza os ideais propostos durante a reprodução dos exercícios nada tinham a ver com massificação, antes pelo contrário, pretendiam questionar toda e qualquer estrutura no próprio fazer, mas também o acionamento de forças interiores que mexessem e transformassem as sensibilidades assim com objetivava Ligya Clark com suas propostas inovadoras.

Clark não aceita a arte como tempero cultural, diletantismo ou lazer, como exibição de status econômico ou de sofisticação intelectual. Pensa a arte integrada à vida como força transformadora capaz de desinibir nossos desejos , realizar o imaginado. Recusa a recorrer a procedimentos precodificados. Uma linguagem alterada ou alternativa deve resultar do encontro de pessoas envolvidas num fazer desprogramado. A vivencia de processos singulares do indivíduo e do grupo produzem eventuais mutações na subjetividade, tendentes a romper com os modelos dominantes. (MILLIET, 1992; pp 102).


Parece um contra senso apegar-se a dois modelos relativamente diferentes, algo que está ligado ao desprogramado, via Lygia Clark e de outro lado exercícios pré elaborados que fazem parte de uma tradição acadêmica recente. Mas tudo isso tem a ver com o paradoxo levantado durante minha formação acadêmica, quando então comecei a desenvolver o projeto “Lygia Clark de polainas”, onde toda a tradição de dança, desde o balé clássico até a dança contemporânea, seria colocada em cheque diante de novas necessidades expressivas.
Então a sensibilidade e a subjetividade proporcionadas por ambas as tendencias, Clark e tradição de dança, possibilitariam novos mecanismos para se dançar usando o publico de maneira efetiva na construção de sentido, sem necessariamente fazer com que ele se mexa, mas ao tempo suscitando nele uma gama de desejos reais que poderiam transformar o momento efêmero da comunicação dançada.
No caso da orientação na Sala Vitrine usamos entre tantos procedimentos de criação, um chamado “Beija Vidro”, em que dialogo com o espectador gera a concretização do trabalho. Os vocacionados passam batom e beijam a vitrine com diferentes intensidades, querendo que o público olhe e reconheça estruturas psíquicas de erotismo e sexualidade (fetiches e gêneros); passagem do mundo infantil para o mundo adulto; movimentos políticos como “existe amor em SP”, etc.
A participação se deu com olhares de estranhamento, inquisidores, mas também risos, deboches, outros beijos. Sem dúvida sem essas participações e respostas do público o procedimento se esvaziaria em termos de proposição poética. Pela vitrine o povo é chamado para perto dos artistas vocacionados e esses artistas se colocam a disposição do público numa indefinição de papéis. O interior do sujeito é remexido com as abordagens técnicas, não existe fronteira entre o mundo de fora e o mundo de dentro, assim como era para os dançarinos modernos.

A prática dessa nova sensibilidade emerge na luta contra a violência e a exploração, quando esta luta está comprometida com modos e formas de vida radicalmente novos: negação total do sistema, sua moralidade, cultura: afirmação do direito de construir uma sociedade na qual a abolição da pobreza e do trabalho resulte num universo onde o sensual, o lúdico, o calmo, o belo se tornem formas de existência e portanto a Forma da sociedade. (MARCUSE, 1969, APUD MILLIET, 1992, p. 103)

BIBLIOGRAFIA

AMORIM, Gícia, QUEIROZ, Bergson. Merce Cunnigham: Pensamento e técnica. Inn: Lições de Dança 2. Rio de Janeiro: Univercidade Editora, 2000.
FARINA, Amilcar, VILLARDI Fábio, BERNARD, Isabelle, DELMANTO, Ivan, GENTILE, Luciano, SCHMIDT, Luciana. Proposta artístico-pedagógica: Material Norteador. São Paulo: Vocare – Revista do Vocacional. Ediçao comemorativa dos 10 anos, 2011.
MENDES, Miriam Garcia. A dança – 1 edição. São Paulo: Ática, 1985.
MILLIET, Maria Alice. Ligya Clark: Obra Trajeto. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1992.
PORTINARI, Maribel. História da dança. Rio de Janeiro: Nova Froteira, 1989.

SIQUEIRA, Denise da Costa Oliveira. Corpo, comunicação e cultura: a dança contemporânea em cena. Campinas, SP: Autores Associados, 2006.

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