Relato sobre a Pele
Pele, a camada epitelial que nos protege e
coloca em contato com o mundo em nossa volta, que nos separa e ao mesmo tempo
nos aproxima.
Essa alegoria foi o ponto de partida para
uma reflexão sobre nossos limites e
possibilidades durante o ano de 2013 no C.E.U Navegantes, para uma turma de 15
vocacionados, que logo tornaram-se 30 e por conseguinte, um grupo.
O grupo refletiu sobre a mecanização dos
corpos e dos pensamentos neste início de século, por meio de uma questão inicial: o que é meu
e o que é nosso?
Sob esta perspectiva, uma abordagem
materialista tornou-se necessária para entender os processos de trabalho que
tornaram o homem, desde a Revolução Industrial até hoje, um sequenciador
continuado, uma máquina.
Historicamente, Karl Marx explica como os processos de
produção levaram o homem de força motriz, que maneja uma única ferramenta, a “
(...)um mecanismo, que opera com uma massa de ferramentas iguais ou semelhantes
de uma só vez (...)”
Igualando, assim, a mão de obra humana a máquina, Marx nos
mostra como o processo de substituição de uma força de trabalho por outra
revelou-se ao longo da história uma estratégia de mecanização do próprio homem,
que começa no trabalho e termina nas relações sociais e formas de pensamento.
Entretanto, essa mecânica ainda guarda o próprio humano em
seu interior, e seria necessário um processo de eliminação de nossas formas
condicionadas de pensar e agir para que encontrássemos o impulso vivo do ser em
seu interior.
Dessa forma através de uma via negativa ou
por exclusão, buscamos recontar as histórias individuais
distanciando e aproximando, ao mesmo tempo, os
pontos de contato e intersecção dessas histórias, desenvolvendo um olhar mais
profundo sobre os desejos e relações de cada indivíduo.
Sem nunca tomar partido sobre uma ou outra
perspectiva, abordamos as questões que operam no individuo e como esse
indivíduo atua no social.
Essas reflexões trouxeram à tona
observações que remontavam à tragédia grega clássica e seu desenvolvimento
entre o coro e o individuo.
Segundo Aristóteles : “ o todo existe necessariamente antes da
parte. As sociedades domésticas e os indivíduos não são senão partes
integrantes da cidade, todas subordinadas ao corpo inteiro, todas distintas por
seus poderes e suas funções, e todas inúteis quando desarticuladas, semelhantes
as mãos e aos pés que , uma vez separados do corpo, só conservam o nome e a
aparência, sem a realidade, como uma mão de pedra.”
Assim, inseparáveis, indivíduo e sociedade se misturam em um ser social
indivisível. Novas provocações então faziam-se necessárias, pois seria o
individuo da pergunta inicial uma invenção da própria máquina de consumo?
Longe de conseguir uma posição consolidada
do grupo sobre a questão, desenvolvemos olhares e considerações que foram
durante todo o processo sendo observados em cena pelos atuantes do Pele.
Da provocação a expressão.
Foi com a escuta aberta e sem
julgamentos, trato realizado pelo grupo
desde o princípio, que os vocacionados observaram atentamente cada história,
cada gesto e o que mais o individuo quisesse mostrar.
Aos poucos, cada ação foi sendo destituída
de palavras e fora proposto que somente no corpo fosse encontrada a mesma
expressão.
Instrumentalmente, a máscara neutra foi
proposta, como forma de chegar até esses limites, os “nós” que cada um queria
comunicar.
A máscara revela ao atuante um olhar
curioso, quase da criança, que precisa a todo momento mostrar o que faz,
desmascarar, retirar as certezas do espaço e do tempo para conseguir mostrar o
mínimo, e do mínimo chegar ao máximo de expressão, através de um fluxo
continuado de investigação a si próprio e de suas relações.
Assim a máscara não esconde o atuante, mas
o revela em seu máximo.
Cada vez que colocamos a máscara, terminamos por também
observar o que de mecânico, imposto e sem vida temos pois o que não flui, não
respira, não expressa, não é nosso, é apenas uma forma de cópia mecânica da
realidade. Segundo Fernando Joaquim
Linares: “ao utilizar uma máscara neutra, somos obrigados a nos afastar dos
nossos discursos cotidianos, desta diversidade de máscaras utilizadas para a
sobrevivência do dia a dia, conduzindo, desta forma, à transposição da
expressividade do rosto para que o nosso corpo resgate e desenvolva em cena
seus atributos pessoais”
Sendo assim, a cada semana revelávamos não somente as
nossas mecanizações, mas também as da sociedade na qual estamos incluídos.
Foram revelados nossos medos de expressão e nossas angustias, mas também o que buscava respirar, emergir
daquele trabalho, algo autoral, algo a dizer dessa expressão viciada.
Observamos esses pontos de convergência e
entendemos potencialmente nossas críticas, através da provocação que o próprio
exercício nos propunha, pois a prática
encostava novamente nas provocações teóricas mútuas que o grupo havia
desenvolvido. Restava por fim uma consideração: como expressar, agora com os
corpos mais lúcidos, essa situação humana de mercadoria, de máquina, e ao mesmo
tempo de sonhos e vontades em compasso de espera?
O entendimento sobre dramaturgia, construção
narrativa, foi proposto ao grupo para que pudéssemos pautar as relações
críticas de pensamentos e expressarmos em cena as reflexões desenvolvidas.
Entendemos nesse percurso a dramaturgia
como algo que pode ou não depender da fábula e da história, mas que deve narrar
ou mostrar algo, utilizando ou não a palavra como instrumento.
Assim, várias perspectivas foram sendo
democraticamente compartilhadas entre o grupo, que também respondia
criticamente às cenas, construindo seus opostos, criando uma relação dialética
entre o expresso e o escondido.
A construção da dramaturgia desenvolveu uma
questão sobre a própria cena uma vez que a experiência expressiva ainda se
confrontava com a massificação do individuo. Ao se deparar com a cena
codificada, reapresentada diversas vezes, o atuante perdia lentamente o jogo
interno e pulsante que inicialmente existia. Seria assim a cena uma forma
intensa de vivência da máquina? Estaria a repetição matando o frescor da arte?
Experimentar as fissuras internas do jogo
de cena foi a saída para esse dilema. Os jogos do início do processo foram
repetidos inúmeras vezes, com a regra de sempre observar as fissuras e tentar
desenvolver uma nova possibilidade na própria cena.
Esses jogos nos permitiam ver que a
dependência do outro para criar e potencializar novos impulsos, e a necessidade
do coletivo desses olhares críticos, assemelhavam-se muito aos jogos sociais.
Observamos que as fissuras internas da própria sociedade poderia ser um espaço
no qual o individual acharia sua identidade, suas questões, sua pele.
Dessa forma, em um exercício continuo de
provocação e resposta em forma expressiva, começamos a observar que o grupo
ganhara uma epiderme, que havia uma identidade dentro da massa mecânica
entendida inicialmente. Mas era nas fissuras, nos pontos pouco observados
daquela máquina, que o exercício de autoria estava escondido e respirava,
vivo.
Referências Bibliográficas
MARX, Karl. O Capital. Quarta edição. São
Paulo: Editora Nova Cultural, 1996. pg 10.
LINARES,
Fernando Joaquim Javier. A mácara como segunda natureza do ator: o
treinamento do ator como uma técnica de ação. 2011. Dissertação (Mestrado em
Artes) – Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo
Horizonte.pg 105.
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