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segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Relato sobre a Pele – Rudson Marcello

Relato sobre a  Pele

Pele, a camada epitelial que nos protege e coloca em contato com o mundo em nossa volta, que nos separa e ao mesmo tempo nos aproxima.

Essa alegoria foi o ponto de partida para uma reflexão sobre nossos limites  e possibilidades durante o ano de 2013 no C.E.U Navegantes, para uma turma de 15 vocacionados, que logo tornaram-se 30 e por conseguinte, um grupo.

O grupo refletiu sobre a mecanização dos corpos e dos pensamentos neste início de século,  por meio de uma questão inicial: o que é meu e o que é nosso?
Sob esta perspectiva, uma abordagem materialista tornou-se necessária para entender os processos de trabalho que tornaram o homem, desde a Revolução Industrial até hoje, um sequenciador continuado, uma máquina.
Historicamente, Karl Marx explica como os processos de produção levaram o homem de força motriz, que maneja uma única ferramenta, a “ (...)um mecanismo, que opera com uma massa de ferramentas iguais ou semelhantes de uma só vez (...)”
Igualando, assim, a mão de obra humana a máquina, Marx nos mostra como o processo de substituição de uma força de trabalho por outra revelou-se ao longo da história uma estratégia de mecanização do próprio homem, que começa no trabalho e termina nas relações sociais e formas de pensamento.
Entretanto, essa mecânica ainda guarda o próprio humano em seu interior, e seria necessário um processo de eliminação de nossas formas condicionadas de pensar e agir para que encontrássemos o impulso vivo do ser em seu interior.
Dessa forma através de uma via negativa ou por exclusão, buscamos recontar as histórias individuais
 distanciando e aproximando, ao mesmo tempo, os pontos de contato e intersecção dessas histórias, desenvolvendo um olhar mais profundo sobre os desejos e relações de cada indivíduo.

Sem nunca tomar partido sobre uma ou outra perspectiva, abordamos as questões que operam no individuo e como esse indivíduo atua no social.

Essas reflexões trouxeram à tona observações que remontavam à tragédia grega clássica e seu desenvolvimento entre o coro e o individuo.

Segundo Aristóteles :  “ o todo existe necessariamente antes da parte. As sociedades domésticas e os indivíduos não são senão partes integrantes da cidade, todas subordinadas ao corpo inteiro, todas distintas por seus poderes e suas funções, e todas inúteis quando desarticuladas, semelhantes as mãos e aos pés que , uma vez separados do corpo, só conservam o nome e a aparência, sem a realidade, como uma mão de pedra.”

Assim, inseparáveis, indivíduo e  sociedade se misturam em um ser social indivisível. Novas provocações então faziam-se necessárias, pois seria o individuo da pergunta inicial uma invenção da própria máquina de consumo?

Longe de conseguir uma posição consolidada do grupo sobre a questão, desenvolvemos olhares e considerações que foram durante todo o processo sendo observados em cena pelos atuantes do Pele.



Da provocação a expressão.

Foi com a escuta aberta e sem julgamentos,  trato realizado pelo grupo desde o princípio, que os vocacionados observaram atentamente cada história, cada gesto e o que mais o individuo quisesse mostrar.
Aos poucos, cada ação foi sendo destituída de palavras e fora proposto que somente no corpo fosse encontrada a mesma expressão.

Instrumentalmente, a máscara neutra foi proposta, como forma de chegar até esses limites, os “nós” que cada um queria comunicar.

A máscara revela ao atuante um olhar curioso, quase da criança, que precisa a todo momento mostrar o que faz, desmascarar, retirar as certezas do espaço e do tempo para conseguir mostrar o mínimo, e do mínimo chegar ao máximo de expressão, através de um fluxo continuado de investigação a si próprio e de suas relações.

Assim a máscara não esconde o atuante, mas o revela em seu máximo.
Cada vez que colocamos a máscara, terminamos por também observar o que de mecânico, imposto e sem vida temos pois o que não flui, não respira, não expressa, não é nosso, é apenas uma forma de cópia mecânica da realidade.  Segundo Fernando Joaquim Linares: “ao utilizar uma máscara neutra, somos obrigados a nos afastar dos nossos discursos cotidianos, desta diversidade de máscaras utilizadas para a sobrevivência do dia a dia, conduzindo, desta forma, à transposição da expressividade do rosto para que o nosso corpo resgate e desenvolva em cena seus atributos pessoais”
Sendo assim,  a cada semana revelávamos não somente as nossas mecanizações, mas também as da sociedade na qual estamos incluídos. Foram revelados nossos medos de expressão e nossas angustias,  mas também o que buscava respirar, emergir daquele trabalho, algo autoral, algo a dizer dessa expressão viciada.

Observamos esses pontos de convergência e entendemos potencialmente nossas críticas, através da provocação que o próprio exercício nos propunha,  pois a prática encostava novamente nas provocações teóricas mútuas que o grupo havia desenvolvido. Restava por fim uma consideração: como expressar, agora com os corpos mais lúcidos, essa situação humana de mercadoria, de máquina, e ao mesmo tempo de sonhos e vontades em compasso de espera?
O entendimento sobre dramaturgia, construção narrativa, foi proposto ao grupo para que pudéssemos pautar as relações críticas de pensamentos e expressarmos em cena as reflexões desenvolvidas.

Entendemos nesse percurso a dramaturgia como algo que pode ou não depender da fábula e da história, mas que deve narrar ou mostrar algo, utilizando ou não a palavra como instrumento.

Assim, várias perspectivas foram sendo democraticamente compartilhadas entre o grupo, que também respondia criticamente às cenas, construindo seus opostos, criando uma relação dialética entre o expresso e o escondido.

A construção da dramaturgia desenvolveu uma questão sobre a própria cena uma vez que a experiência expressiva ainda se confrontava com a massificação do individuo. Ao se deparar com a cena codificada, reapresentada diversas vezes, o atuante perdia lentamente o jogo interno e pulsante que inicialmente existia. Seria assim a cena uma forma intensa de vivência da máquina? Estaria a repetição matando o frescor da arte?
Experimentar as fissuras internas do jogo de cena foi a saída para esse dilema. Os jogos do início do processo foram repetidos inúmeras vezes, com a regra de sempre observar as fissuras e tentar desenvolver uma nova possibilidade na própria cena.

Esses jogos nos permitiam ver que a dependência do outro para criar e potencializar novos impulsos, e a necessidade do coletivo desses olhares críticos, assemelhavam-se muito aos jogos sociais. Observamos que as fissuras internas da própria sociedade poderia ser um espaço no qual o individual acharia sua identidade, suas questões, sua pele.

Dessa forma, em um exercício continuo de provocação e resposta em forma expressiva, começamos a observar que o grupo ganhara uma epiderme, que havia uma identidade dentro da massa mecânica entendida inicialmente. Mas era nas fissuras, nos pontos pouco observados daquela máquina, que o exercício de autoria estava escondido e respirava, vivo. 




Referências Bibliográficas

ARISTOTELES. A Política. São Paulo: Editora Hemus, 2005.pg 12.

MARX, Karl. O Capital. Quarta edição. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1996. pg 10.


LINARES, Fernando Joaquim Javier. A mácara como segunda natureza do ator: o treinamento do ator como uma técnica de ação. 2011. Dissertação (Mestrado em Artes) – Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte.pg 105.

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