Passo 1: O Estimulo
Minha inquietação-ensaio se inicia com o registro de uma aula-explicação
recebida por mim, artista orientadora, e realizada por um vocacionado no
primeiro dia de encontro-orientação:
"É muito simples e fácil dançar danças urbanas. É assim ó, eu falo
e você traduz:
- 'magazine'.
- 'revista'.
- Isso, então como é que se folheia uma revista? (e o vocacionado assume
as qualidades de movimento lento, continuo, com pausas realizadas no mesmo
intervalo de tempo, leve, em um espaço direto e com movimento isolado dos
braços) É assim, não é? Então, você pode brincar com isso (e começou a realizar
a mesma movimentação mas variando as direções do braço no espaço). E assim
vai... (E continuou)
- 'o que é toy man?'
- 'homem de brinquedo'.
Então, lembra do Toy Story, o filme? Como é que os bonequinhos de
brinquedo se movem. É só sacar o nome das danças que você já sabe fazer, já
pode improvisar em cima."
Passo 2: As sinapses
Esse relato me fez refletir sobre a palavra técnica, muito utilizada nas
"danças acadêmicas" ou cênicas, a palavra estilo, muito utilizada
pelas danças sociais/populares, assim como as atividades realizadas em uma aula
de dança, chamada pelo Projeto Vocacional de procedimentos.
A técnica de uma arte, ou estilo da mesma, está baseada no mesmo principio
daquilo que acompanha a humanidade, e segundo Huizinga (2012) surge antes mesmo
da cultura, o jogo. Segundo este filósofo, a definição de jogo permeia regras
bem definidas, disposição para jogar, tempo e espaço definidos e afastados da
realidade cotidiana. Ele ainda diz que todo ritual e toda manifestação
artística são desdobramentos do jogo.
O corpo humano é algo extremamente complexo. O ser humano é um dos
animais que possui maior número de articulações. Isso quer dizer que as
possibilidades de movimento são infinitas e por isso sua dança e até sua
movimentação cotidiana é muito rica em variações. Essas muitas variações geram a riqueza do que podemos chamar de
dança no mundo todo, mas pode também ser perigosa quando se trata de
criatividade.
A artista plástica Fayga Ostrower (2007) afirma que a criatividade
acontece quando o artista é desafiado por regras e/ou restrições, e não quando
ele é deixado livre para a criação. Isso porque quando tenho todas as
possibilidades de realizar um trabalho artístico acabo me apoiando no que já é
conhecido, no que é meu de costume. No caso da dança, quando posso me utilizar
de todas as possibilidades do meu corpo, acabo realizando os mesmos movimentos
que realizo com mais facilidade, que já executei muitas vezes... Ampliar o
repertório nem sempre é interessante, ás vezes o ato criativo acontece do
oposto, de restringir o repertório de movimentos. E é aqui que o jogo entra. O
jogo como criação de regras pré-estabelecidas.
Passo 3: O Desproblema
Pergunto-me então, quais as vantagens e desvantagens de se ter um
estilo/técnica? E logo também me pergunto, quais as vantagens e desvantagens de
se desfazer dos mesmos e se abrir para todas as possibilidades do corpo?
Passo 4: As Danças
Buscando responder essa pergunta volto-me para as diferenças entre as
danças cênicas e as sociais/populares. Percebo então que as danças
sociais/populares possuem muitos estilos e subdivisões: as danças urbanas e sua
infinidade de estilos que não param de se ampliar; as inúmeras danças de salão;
as danças brasileiras, que ainda ninguém conseguiu contar quantas são (e talvez
nunca consiga, pois elas, como cultura, estão em mutação e transformação) e, em
cada dança dramática brasileira os seus momentos específicos, com qualidades e
características de movimentos diferentes.
Já as danças cênicas, ou "acadêmicas", não se ramificam em
estilos. Mesmo o balé clássico, que se comparado à dança moderna e à dança
contemporânea é ainda muito restrito em suas movimentações, se torna muito
amplo quando percebemos que o mesmo surge de uma exploração das movimentações
de diversas danças populares e da corte européia. Ao menos o balé clássico, a
dança moderna e a dança contemporanea não se ramificam com o nome dança - nas
danças brasileiras, por exemplo, temos dança do côco, dança samba, dança
maracatu, dança catira, dança vanerão, entre muitas outras. Mas possuem
diversas técnicas, procedimentos ou formas de se ensinar e de se fazer aquela
dança, formas essas decorrentes da ação do educador/orientador.
Passo 5: O Desretorno do
Desproblema
A dança contemporanea sofre hoje com as vantagens e desvantagens de se
abrir para todas as possibilidades, ela se torna: "a dança do pode
tudo", "a dança da mistura", "a dança que não tem cara de
nada".
Foi preciso muita transformação na arte-educação para o sucesso do
ensino da arte contemporanea, pois se não tivéssemos vivido a crise da livre
expressão, não saberíamos hoje que, como educadores/orientadores, temos que
conduzir o processo, colocar regras, criar procedimentos, criar jogos. Porém, o
movimento da arte contemporãnea tem também essa caracteristicas de continuidade
da arte moderna, de arte pós moderna, quer dizer, uma arte que valoriza a
liberdade e a expressão. É a arte do abrir e fechar, construir e desconstruir,
estabilizar e desestabilizar...
Agora voltemos para as danças sociais/populares que muitas vezes - em
nossa ação como Educador da Dança, sem outra palavra que complemente o
substantivo - se transformam em cardápios infinitos: "quero dançar
isso", "vim aqui para aprender aquilo" e percebamos as vantagens
do restringir. As danças sociais/populares em sua origem não possuem escola,
professores ou orientadores, muitas delas são aprendidas no momento da
manifestação. O papel do mestre é de guiar a manifestação e não necessariamente
de dar aulas ou ensaiar os brincantes. Com a ausência do ensino formal, os
procedimentos, as atividades, os jogos são criados e acabam se agregando aquela
dança e dividindo aquela manifestação em momentos ou estilos. Como não se tem o
professor ou muito tempo de estudo antes da apresentação, a dança é dividida em
partes, organizadas em momentos e em jogos/repertórios com regras claras e
simples.
Nas danças populares as regras devem ser claras e expostas a todos os
participantes, isso gera sua multiplicidade de danças, que, entendendo a
cultura como algo em constante transformação, também é em si é um ato de abrir
e fechar, construir e desconstruir, zelar e trair a tradição.
Passo 6: De Volta ao Estimulo
O comentário-aula-explicação realizado pelo vocacionado expõe os
processos de aprendizagem das Danças Urbanas que tem por características serem
realizados de maneira informal e popular. Para se restringir e assim ter mais
possibilidades de criação, os bailarinos de rua se utilizam de palavras que
tragam a memória movimentos. As características e qualidades desta movimentação
cotidiana servem de estimulo para a explicação e criação de diferentes
"estilos" dentro de uma mesma linguagem que em seu nome já é plural,
a Danças Urbanas e que em si já possui suas restrições "gramaticais"
se compreendermos que a mesma faz parte de uma grande linguagem artística: a
Dança.
Todos os passos: A Busca por uma
Dança-educação Popular
Este ensaio não se trata de erros ou de acertos, ou se trata de todos os
erros e acertos já cometidos e que ainda virão. Este ensaio é o desresultado de
alguém que acaba de se tornar Artista Orientadora e está inquietada com a
identidade construida pelo Projeto Vocacional.
Assumir que todo ser humano, por se movimentar desde sua gestação, é
capaz de criar em dança desde o primeiro dia de aula-orientação; assumir que o
que fazemos é dança e que esta não depende de rótulos para se afirmar; assumir
que eu como artista orientadora devo deixar de lado meu domínio para me juntar
a um coletivo, me tornando mais mestre que professor; e finalmente desvelar
todas as regras do jogo, expôr procedimentos, permitir que o outro compartilhe
dos processos e da liderança; é o que faz desta grande empreitada uma educação
popular. Seja a dança que for, ela se transforma em uma dança popular através
do como ela é pesquisada/aprendida. Desvelar os procedimentos para assim gerar
futuramente a chamada autonomia dos coletivos. Insight pronto. Ideias
organizadas. Vamos agora a realidade, esta que tem o (des)prazer de
des-re-organizar as idéias...
Bibliografia:
HUIZINGA, Johan. Homo Ludens - O jogo como elemento da cultura. Editora
Perspectiva, 7° edição. São Paulo-SP, 2012.
OSTROWER, Fayga. Criatividade e processos de criação. 21ª.ed.
Petrópolis: Vozes, 2007.
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