“FOUCAULT VAI ÀS RUAS” – ROTEIRO/ENSAIO
EQUIPE
ROTEIRISTAS LESTE 1 – Andrea Tedesco, Antônia Mattos, Cibele Bissoli,
Márcio de Castro, Priscila Gontijo, Robson Alfieri e Vanise Carneiro.
FADE IN
CENA
1. INT – APARTAMENTO MARCIO FOUCAULT –
DIA
DETALHE
de um rádio relógio marcando 07:05 no visor. Vemos uma mão desligando o rádio
relógio. Câmera corrige e vemos MÁRCIO FOUCAULT, 32 anos, olheiras profundas,
deitado na cama e se espreguiçando. Ao seu lado, vemos LIGIA, 28 anos, cabelos castanhos, grávida de 8 meses
dormindo profundamente. MARCIO FOUCAULT alisa a sua barriga carinhosamente. Em
seguida, levanta-se apressado.
CORTA PARA:
CENA 2.
EXT– RUAS DA CIDADE /ZONA LESTE – DIA
Vemos MÁRCIO FOUCAULT caminhando pela Avenidade Amador Bueno da Veiga.
No caminho, encontra um grupo de manifestantes. O LIDER DA MANIFESTAÇÃO entrega
um cartaz para Márcio que não sabe o que fazer com ele. DETALHE do cartaz: “MEU
CU É LAICO”.
MARCIO
FOUCAULT – Desculpe, meu senhor,
mas não posso participar, agora. Estou com pressa.
LIDER MANIFESTAÇÃO (irônico) – Ah,
está com pressa? Desculpe o aborrecimento, então. Nós também estamos com
pressa. Nós apenas queremos mudar o Brasil. Vai pra minoria dos gays ou dos
índios?
O LIDER
empurra MARCIO para um grupo de índios. MARCIO tenta se desvencilhar. Nesse
momento, o LIDER cola um adesivo na blusa de MARCIO FOUCAULT com a mesma frase:
“MEU CU É LAICO”. MARCIO foge.
CENA 3. EXT – CENTRO CULTURAL DA PENHA/FACHADA – DIA
MARCIO FOCAULT chega apressado no Centro Cultural da Penha. Na porta, vemos uma nova aglomeração e muitas câmeras. Ele não consegue entrar no centro e para pra observar. VÁRIOS REPÓRTERES disputam espaço para ver quem consegue dar a notícia.
Repórter 1
– Nesse momento, muitos vândalos quebram as lojas na zona leste.
Repórter 3
– A polícia tenta conter as manifestações, mas os protestos se multiplicam.
Repórter 1
– Os carros estão todos parados. Os motoristas indignados.
Manifestante
1 – Sem violência, sem violência, sem violência!!
Outros MANIFESTANTES surgem em várias direções.
DETALHE de um cartaz:
“VOCÊ ACORDOU AGORA. A PERIFERIA NUNCA DORMIU”.
CENA
4. INT.
CENTRO CULTURAL DA PENHA – DIA
Vemos SÓCRATES, 35 anos, homem bonito e musculoso,
andando em círculos num grande salão. MARCIO FOCAULT entra em quadro e tenta
acompanhá-lo. SÓCRATES aumenta o passo, Márcio Foucault para esbaforido.
SÓCRATES corre.
MÁRCIO –
Onde estão os outros?
SÓCRATES
– Que outros?
MÁRCIO
– Como assim? Andrea, Antônia, Cibele, Priscila e Vanise? Nossa equipe!
SÓCRATES
– Essas mulheres são tão imprevisíveis... Por favor, não pare de andar, isso
atrapalha o fluxo dos meus pensamentos. Sou peripatético! E nem dormi essa
noite pensando na sua pergunta...
MÁRCIO (baixo, consigo) – A
periferia nunca dormiu.
SÓCRATES – O que disse?
MÁRCIO
(irônico e sem paciência) – Nada.
Pensei alto. Ah, sim. A minha pergunta. Qual era mesmo? Calma. Ah! Lembrei. Os processos
criativos em turmas iniciantes. Se é possível pensar esses processos de modo
que fujam das bases clássicas, ou ainda, de modo que não sejam lineares... É, é
isso.
SÓCRATES (pára por um minuto, pensativo) – Bases
clássicas, linearidade. Essas turmas são formadas segundo os moldes da educação
clássica? Quanto tempo de trabalho esse programa prevê?
MÁRCIO
(com má vontade) – Não, não são
montadas nos moldes clássicos e temos um tempo exíguo de trabalho.
SÓCRATES
(voltando a andar) – Há continuidade?
MÁRCIO
(para si mesmo) – Palhaçada.
SÓCRATES – Perdão,
não entendi.
MÁRCIO – Não!!!
Eu disse que não há continuidade.
SÓCRATES
– Sei, sei. Isso já pode te dar algumas pistas, não?
MÁRCIO
(provocativo) – Eu acho que se a
pessoa se propõe a escrever uma cena na qual um dos personagens é o Sócrates
filósofo, ela tem que bancar o desafio e responder a minha pergunta de modo
socrático. Para mim você está mais para oráculo.
SÓCRATES começa a sentir calafrios. MARCIO
FOUCAULT observa temeroso. Baixa um santo em SÓCRATES que rodopia no mesmo
lugar e estala os dedos. SÓCRATES começa a tatear o caminho em torno de si.
Parece estar cego. MÁRCIO se afasta.
SÓCRATES/TIRESIAS
– Ai, Mizifi. Sai pra lá, belzebú! Eu
vejo um caminho longo e árduo para você, meu fio. Nessa busca incessante pela
verdade tem muitas pedras no caminho. Vejo que é necessária uma mudança de
olhar da sua parte. OLHE!
MÁRCIO
(olhando em volta, procurando algo) –
O quê? Olhar o quê?
SÓCRATES/TIRESIAS
– Como o quê? Você é cego?
MARCIO (hesitando) – E-eu?
SÓCRATES/TIRESIAS
– Pare de pensar no processo como orientador e passe a pensar nele como
aprendiz. E... CUIDADO!
CENA 4.
EXT. – VIELA ESCURA DA VILA CÍSPER – DIA
Vemos uma
viela muito estreita, escura. Uma ponte caindo aos pedaços dá passagem para um
lugar solar, cheio de lixo, perto de um esgoto. Em cima da ponte, um menino
passa correndo soltando pipa.
CARTELAS, LETRAS BRANCAS GRANDES, SOB FUNDO PRETO:
“FOUCAULT VAI ÀS RUAS”
CORTA PARA:
CENA 5 -
EXT. – RUA VILA CISPER – DIA
O menino
continua correndo com a sua pipa e some atrás de uma casa. Vemos uma menina
AMANDA, 14 anos, usando óculos de aros grossos, atravessar a ponte caindo aos
pedaços. Anota algo em seu bloco de notas.
AMANDA
– Um rato!
Dentro do
esgoto, além de muito lixo, vemos um travesseiro, um liquidificador, um rato e
um gato. A menina assobia olhando para o outro lado da ponte e aparecem vários
VOCACIONADOS na faixa dos 15, 16 anos. Todos atravessam a ponte tirando fotos
com seus celulares.
CENA 6 -
INT – SALA DA MULTI-USO CEU QUINTA DO SOL – DIA
O mesmo
grupo de jovens está sentado em roda. A MESTRA, 35 anos, vestindo moleton e
regata está toda suada e descabelada. Ela bebe água com voracidade. Se contorce
no chão tentando relaxar a coluna. Os jovens conversam alegremente. Uma luz de
fim de tarde entra pela janela iluminando o ambiente.
AMANDA
SANTOS – Tirei várias fotos antes de me perder de vocês.
Essas ruas parecem um labirinto.
WILLIS
MENEZES – Você que é perdida, Amanda. Mora na Vila Císper
desde que nasceu e ainda se perde.
AMANDA
SANTOS – Eu não sou perdida! Eu fiquei perdida, seu
trouxa!
PEDRO
HENRIQUE – Eu também tirei fotos, nem sei qual vou
escolher.
MESTRA
– Quem vai começar?
Silêncio. Todos se entreolham. LUISA ALICE levanta
o dedo timidamente.
LUISA
ALICE – Eu escolhi uma menina de cinco anos. A menina
correu, pulou, saltou obstáculos e foi parar numa aldeia de índios do outro
lado do rio.
MESTRA
– Você foi parar numa aldeia de índios? Como assim?
WILLIS
MENEZES – Íiiiii.... Essa daí viaja. Delira!
LUISA
ALICE – Não é viagem nenhuma. Eu até trouxe um cocar.
Olha aqui.
LUISA ALICE tira o cocar da mochila e põe na cabeça.
LUISA
ALICE – Pegamos ônibus, trem e charrete. Depois um burro
nos deu uma carona...
MESTRA–
Meu Deus, acho que não estou me sentindo muito bem. Deve ser o cansaço.
LUISA
ALICE – Eu também estou exausta, professora. Cantamos,
fizemos vários rituais indígenas. Até fumei um troço lá. Depois me consultei
com um xamã. Ele fumou um charuto. Soprou a fumaça em mim e depois me deu um
abraço. O xamã disse que tenho o dom da cura.
WILLIS
MENEZES – Gente, a professora está passando mal de tanto
ouvir absurdos.
A MESTRA se abana com um livro. Todos observam
as fotos que tiraram em seus celulares. DETALHE de uma das fotos. Um senhor, 70
anos, sozinho, olhando um bueiro, vestido com
roupa social.
AMANDA
SANTOS – Mestra, sabe o que eu percebi nesse trajeto? Que
todo mundo tem um carro. Olha aqui, essa rua tá toda suja, muito esgoto, muito
lixo, dois ratos, as casas caindo aos pedaços, mas todo mundo tem carro.
WILLIS
MENEZES – E televisão. De plasma. Com mais de quarenta
polegadas. Eu vi.
VITÓRIA
ELISABETHE – O que mais me impressionou foi o escarro. Um
homem escarrou com uma violência que me assustou. Foi bem na minha frente, eu
vi todo o processo, o som, e então uma coisa monstruosa saiu dali de dentro.
Por que os homens fazem isso?
ELLEN
ALVES – Mulher também escarra.
CENA 8 – INT. – SALA DE REUNIÃO
ARTÍSTICO-PEDAGÓGICA – DIA
MESTRA
chega atrasada para a reunião. Ao invés de sua equipe, ela dá de cara com
RISCO, bela mulher, 30 anos, de cabeça raspada parecendo uma HARE KRISNAH.
MESTRA esfrega os olhos, dá um tapa na cara. Ainda acha que está sonhando.
RISCO - De onde vens?
MESTRA - A pergunta é para onde vou!
RISCO - Bem, para onde você quer ir?
MESTRA - Digamos que eu quero somente chegar.
Risco dá de ombros. Silêncio. Risco, com ar
de investigador, chupa o dedo, coloca-o para cima para descobrir o lado para
onde o vento está soprando, agacha-se recolhe pequenas amostras de solo
buscando vestígios.
MESTRA (observa e diz): Qual o
caminho mais rápido?
RISCO: Você tem certeza de que quer o caminho mais rápido?
MESTRA (em dúvida): Não sei, sei lá,
por quê? Então, pode ser o mais longo mesmo.
RISCO: Ah! Claro, o mais longo...sei.
MESTRA: Que tal o mais bonito?
RISCO (rindo muito): Ui, tá
querendo o caminho mais bonito!! Você é muito engraçada!
Mestra se levanta irritada. Risco empurra
Mestra no buraco.
MESTRA (gritando): Você é louca? Me tira daqui já. Tá me
ouvindo? Me tira daqui.
CENA 9 - INT – GABINETE DE SÓCRATES E
MÁRCIO FOUCAULT – NOITE
SÓCRATES – Tem certeza que a sua cena não está um pouco inverossímel? Uma
menina que vai parar numa tribo indígena em plena zona leste?
MÁRCIO
FOUCAULT – E a sua cena? Uma HARE KRISNAH chamada
Risco, que coisa mais Strindberg! Você adora um personagem simbólico. Sócrates,
você precisa ler mais Beckett pra ajudar na criação da nossa peça.
SÓCRATES – Isso é um filme e não uma peça.
MÁRCIO FOUCAULT – Um filme sobre uma peça sobre um ensaio/peça dentro de um
teatro dança.
SÓCRATES – Eu acho que
precisamos focar mais, Foucault...
MÁRCIO FOUCAULT – Focar? Escolher um único caminho, é isso? Essa é uma viela
estreita sem céu, sem mar, sem rio. O processo de iniciação artística precisa
seguir leis? Normas? (pausa, Márcio encara Sócrates) Sócrates, você já
leu Mia Couto?
Nenhum comentário:
Postar um comentário