(...)
Primeiro movimento (?). Ensaiando-me: ensaio mapeamento, ensaio
dúvidas, ensaio visões.
O que mapear? Qual é a
pergunta que me faço? Quais as visões que tenho?
Uma de minhas chaves de entrada:
“O ensaio não é a articulação de um pensamento apenas, mas de um pensamento
como ponta de lança de uma existência empenhada. O ensaio vibra com a tensão
daquela luta entre pensamento e vida, e entre vida e morte que Unamuno chamava
de 'agonia'. Por isso, o ensaio não resolve, como o faz o tratado, o seu assunto.
Não explica o seu assunto, e neste sentido não informa aos seus leitores. Pelo
contrário, transforma o seu assunto em enigma. Implica-se no assunto, e implica
nele seus leitores. Este é o seu atrativo.” (FLUSSER, Vilém. Ficções
filosóficas. São Paulo: EDUSP, 1998, p. 96).
Ensaiando. Ensaiando-me. Nada
certo. Um breve olhar, uma certa percepção, estou tateante/tateando, à
espreita, envolto em uma passividade ativa, em uma atenção flutuante. Neste
momento, agarro-me em um título (que não se pretendia título) do meu primeiro
ensaio do ano passado, “ (...) Terei
eu a coragem de compartilhar meus rascunhos, inacabados, frágeis, inconclusos,
cheios de brechas, lacunas, hiatos ou soçobrarei sobre o peso da escrita bem
feita, eficaz e altiva, limpa e certeira? Eu quero correr o risco de uma
escrita de múltiplas entradas, que compartilha as intensidades do meu processo
de mapear e (me) convida/convoca ao movimento ininterrupto de reinvenção, de
atribuição de sentidos não definitivos, absolutos, mas necessários e indissociáveis
às singularidades de um tempo-espaço. (?) Lançar-me-ei. (?)”
O risco dos primeiros escritos que adentram as
nebulosas, que buscam mapear (cegamente – e ser cego aqui não tem uma conotação
negativa) as relações que ainda não estão delineadas, que ainda estão regidas
pelo assalto dos primeiros encontros, que não tem os contornos claros,
iluminados, previsíveis, ditados e reproduzidos rotineiramente pelo
apaziguamento do convívio, das tipologizações esculpidas, demarcatórias.
Relações de contornos enevoados, borrados, desfocados, amorfos, estranhados,
acentralizados. O risco dos primeiros escritos que buscam mapear antes do
assossego, antes da ordenação, antes da instauração do discurso ‘agora eu sei
falar sobre esta coletividade’, antes de saber onde é que estamos, rompendo com
a segurança do ‘mais à frente eu saberei falar melhor sobre este coletivo’. Primeiros
escritos que buscam mapear pelo avesso, que buscam mapear o não saber/a
ignorância sobre a coletividade a qual estou inserido, o não saber suas regras,
o não saber quais são seus deuses, seus monumentos erguidos. Mapear sem
certezas, vacilante, gaguejante, hesitante, trêmulo, ineficiente. Um mapear que
não se esgota, que é sempre inconcluso, sempre desejante de conseguir mapear
aquilo que lhe escapa e que lhe escapa de novo e de novo e de novo e novamente.
Mapear os desvios, as rotas de fuga, aquilo que foge da institucionalização – a
cena dos artistas vocacionados do CEU Azul da cor do mar que não pode ser
apresentada no sacro/solene recinto do palco/teatro mas que eclode na rua, numa
organização clandestina, marginal. Mapear ensaindo(-me), atribuindo sentidos,
que não estão dados a priori, sentidos transitórios, não fixos, voláteis.
Tateando pistas: algumas
afirmações/problematizações que perpassaram pelo tempo-espaço de nossa equipe
que me afeta/afetou de alguma maneira, me contaminou – o que ficou em mim e o
que fiz com isso.
- Os
princípios do material norteador já estão claros. A experimentação dele é
que ainda está para ser feita.
“Ao contrário dos parâmetros da pedagogia
tradicional, baseada no desenvolvimento progressivo e linear de seus alunos a
partir de conhecimentos administrados pelo professor, o Programa Vocacional
pretende adotar como metodologia a instauração de processos criativos. Sob tal
pedagogia, o artista vocacionado não necessita da aquisição prévia de
conhecimentos, técnicas ou habilidades. Através da experiência criativa,
baseada na pesquisa cotidiana, ou seja, na formulação constante de perguntas ao
ver-se diante das questões, lacunas, vazios instaurados pelos próprios
processos de criação coletiva, ele poderá construir o conhecimento e
expressar-se artisticamente, em diálogo com o artista orientador” (Revista
Voccare, 2012, p. 23).
- Como um indivíduo interfere
na coletividade? Como viver juntos, com as diferenças, a heterogeneidade?
Buscamos homogeneizar as coletividades?
“Como lidar com as
diferenças e fazer delas uma situação favorável para a criação de algo, para a
instauração de um processo criativo emancipatório? Buscou-se olhar as
diferenças como diferenças de naturezas,
pretendendo com isso resistir, ao menos, a uma hierarquização moralizante
valorativa (bom, mal, melhor, pior, feio, bonito etc). Dito isso, poderíamos
entender cada coletivo (Equipe, turma ou grupo) como portadores de uma dinâmica
singular, na qual seus integrantes estabelecem relações entre si, em constante
movimento. Sem sucumbir à tentação de eleger, de legitimar um modelo de
coletivo a ser seguido, podemos, talvez, criar uma analogia entre as ilimitadas
possibilidades de coletivos e os ecossistemas: “O ecossistema possui mecanismos
relacionais que podem ser designados como intrínsecos ou extrínsecos. Os
intrínsecos realizam as relações com a rede local, formando o seu
microssistema, em contrapartida os extrínsecos, se inter-relacionam com outros
territórios, trocam, importam e exportam informações e têm como pressupostos os
meso e macrossistemas. Neste sentido, importa definir o
espaço/território/ambiente que compõe o microssistema. Esse pode variar de
forma considerável e contemplar desde o conjunto limitado de elementos, até uma
múltipla e complexa rede de organismos. Entretanto, todo espaço/ambiente se
caracteriza pela inter-relação, interdependência e influência que os elementos
integrantes exercem entre si”[1].
Quais as regras de funcionamento de cada um destes ecossistemas? Como eles se
mantêm? O que eles produzem? Como eles produzem o que eles produzem? Quais são
as relações que se estabelecem nestes ecossistemas para manutenção e
desenvolvimento deles? Como entender os coletivos e seus modos de produção como
um sistema vivo e aberto?”. (Revista Voccare, 2011, p.)
- O principal foco das
orientações/coordenação é criar uma rotina de trabalho? É seduzir os
artistas vocacionados/AOs para que eles gostem, que eles voltem? Há espaço
para instauração/percepção de crise (entendida aqui não no seu sentido
reativo, niilista, negativo)? Somos reféns da ‘alegria banal’? De que
maneira a manutenção do ‘gostoso’ interfere na instauração dos processos
criativos emancipatórios?
- O
encontro como ação cultural, como materialidade estética. Tensões entre política
“velha” e micropolíticas. Coexistência do macro e micro.
“...incrível
como toda aquela força reativa, toda a objetividade daquela política
incubadora, daquele discurso instrumentalizante e produtor de pequenos
poderes, ao se misturar com meus anticorpos, feitos no azeite dendê,
produziram em mim uma vontade ainda maior de refletir sobre o silêncio. Sobre
os diversos silêncios que encasulamos cuidadosamente à espera de uma brecha
micropoliticamente ativa, viva! e que tenha ouvidos para ouvir a discordância,
as dissonâncias, a opinião diversa, uma política da diferença e não do igual,
única capaz de curar-nos da cegueira de uma unanimidade amorfa, perversa e histórica”.
- Quais são os valores que nos regem ao afirmarmos que tal material de estímulo (por exemplo, o Harlem Shake) é de “conteúdo duvidoso” ou “sem conteúdo”?
- A forma democracia é inquestionável, ela é somente um espetáculo (falacioso)?
- Como me
posiciono nas orientações/coordenação? Eu assumo
posição/estatuto/representação de Estado? Eu instauro uma relação de
poder?
- Se o foco é a instauração de
processos criativos emancipatórios qual a pertinência da reunião geral?
- Quando há o vazio, mantém-se
o vazio ou/e este suscita um movimento de ‘galgar espaço de poder’? Há
vazios em nossas orientações/coordenação? Como lidamos com eles? E quando (não)
há uma liderança o que fazer?
- Por que o artista
vocacionado ‘saqueia’ o Harlem Shake,
torna-o seu, profana-o, e o teatro não? O AO é a ‘entidade/instituição que
legitima o que é teatro e, portanto, o detentor de suas leis’? Quais as
possibilidades de se fazer teatro? O que é preciso para se fazer teatro?
Onde está a teatralidade? Problematizamos a nossa concepção de teatralidade
ou a enfiamos goela abaixo?
- Artista vocacionado
comparando o Programa Vocacional com uma oficina de teatro: “Aqui
(Programa Vocacional) se faz outras coisas”. Pergunto-me: Quais são estas
outras coisas?
- Até que ponto a fala ‘bem
articulada’ do artista vocacionado é reprodução do discurso do AO?
- Quais são os procedimentos
para cada turma/grupo? São os mesmos procedimentos? Qual a relação entre
os procedimentos e as materialidades produzidas pelos artistas
vocacionados? Os procedimentos adotados nas orientações delimitam uma
estética?
- Será que tudo a gente vai
saber o que é?
- O espaço da reunião de
equipe: discussão de questões artístico-pedagógicas. O que são questões
artístico-pedagógicas? Quais são as questões artístico-pedagógicas que cada
um traz/seleciona para nossos encontros de equipe?
- A gente tem algumas
respostas (vacilantes, temporárias, em trânsito).
Algumas perguntas que me faço
diante de nosso coletivo/equipe:
- Como
fomentar um espaço no qual as complexidades do ato de orientação possam
vir à tona, tornando-se um material de reflexão coletiva (escapando dos
fantasmagóricos esconderijos/calabouços privados, íntimos)?
- Como
fomentar um espaço no qual não haja a necessidade de (somente) afirmar as
certezas, mas que possamos nos permitir ao encontro com a fala
desconcertante/desconcertada do pensamento em formação, em ebulição, em
ensaio, em processo?
- Como
fomentar um espaço no qual haja a exposição de nossas práticas
artístico-pedagógicas e que, feito isso, possamos lançar olhares sobre ela,
indo para além dos meneios das pessoalidades?
- Como
fomentar a percepção do complexo campo de força de cada coletividade a
qual participamos durante a nossa estada/passagem pelo Programa Vocacional
(turmas e grupos, Equipe, Projetos, Geral)?
- A
Equipe tem autonomia?
Visões:
Um ethos ensaístico, uma atitude ensaística. Um encontro ensaio, uma
reunião ensaio, uma orientação/coordenação ensaio. O ensaio enquanto
experiência existencial, enquanto forma de guerrilha.
[1]
Zamberlan, C., Calvetti, A., Deisvaldi, J.,De Siqueira, HCH. Qualidade de vida, saúde e
enfermagem na perspectiva ecossistêmica. Revista eletrônica Enfermaria Global.
n.20, Outubro/2010. http://scielo.isciii.es/pdf/eg/n20/pt_reflexion2.pdf
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