TRAJETÓRIA DO OLHAR
artista orientadora teatro ADRIANA DHAM
equipamento CEU Vila Atlântica
Caminho
por lugares já visitados.
2010
primeiro olhar.
2011
segundo olhar.
2012
terceiro olhar.
2013
de novo no mesmo lugar OLHAR.
E
diante dos meus olhos um papel em branco.
E
por alguns instantes ele fica olhando pra mim.
Silêncio.
Silêncio
e constrangimento.
O
diálogo não acontece.
Só
o silêncio. Apesar do barulho da quadra de esportes, numa tarde de domingo
quente, antes de orientar o grupo PÉ NA JACA.
PAPEL
– E então?
EU
– O quê?
PAPEL
– Você!
EU
- ????
PAPEL
– Não precisa olhar assim pra mim, com esta cara de espanto. Pode dizer o que
tem a dizer...
EU
– O quê?
PAPEL
– (perdendo a paciência) Mais um ano e o que você vai fazer?
EU
– (depois de uns instantes) Não sei como começar...
PAPEL
– É só começar! (pausa) E então?!
Sem
entender como e porque as palavras começam a escorrer no papel que aos poucos
deixa de ser branco.
EU
- Aqui estou. Busco um novo olhar para o lugar (afinal são quatro anos) e para
os vocacionados. Um novo olhar poético para este caminhar. O que me entusiasma?
O que me incomoda? Quais são as minhas primeiras impressões da turma? E dos
grupos?
PAPEL
– (interrompendo) Como você se vê neste momento?
EU
– (pensando um pouco) “Faça seu dia valer a pena como se fosse o último.” (em pensamento,
pego emprestada a fala da Vanessa, vocacionada que acaba de chegar á turma).
PAPEL
– Quais são as suas inquietações?
EU
- Gostaria de levar possibilidades diferentes para despertar o poético de cada
um. (pausa) Como fazer? (pausa) Não sei.
PAPEL
– Sabe, sim!
EU
– Não.
PAPEL
– Certeza?
EU
– Não, não sei. (pausa) Bem.... (pensando alto: parece que estou ouvindo a
Melissa dizer para equipe) “Eu coloco as minhas palavras para andar”. “Uma
tarefa: um vídeo construído, 2 minutos, é preciso materializar essa inquietação
do mundo de lá”.
PAPEL
– Construir uma metáfora.
EU
– Bem, vamos lá. Começo a registrar tudo. E as primeiras inquietações da turma
aparecem: improvisação e uma sala virtual. A sala multiuso vira um jogo virtual
gigante delimitado por cadeiras. A turma se vê no jogo como personagens de
games e, fora dele, se relaciona com o seu cotidiano. Cenas de violência. Mas é
apenas um esboço, um rascunho. As ideias ainda não estão claras. O vídeo é
composto de traços e cores. E também de música. Escolhida por eles. Agora no
grupo Os Filhos (pausa) uma reclamação e alguém desabafa: “Falta motivação,
entusiasmo!”
PAPEL
– (irritado) “É preciso olhar de fora, sem lavar as mãos!”
EU
– Mas eu não sei como. A única coisa que me vem á cabeça é buscar uma
ritualização nos nossos encontros, preservar o espaço de criação. Buscar o
prazer e evitar a dor.
PAPEL
– (gritando nos meus ouvidos) “É preciso ser radical com esse povo que pensa
ser um grupo”.
EU
– Fico preocupada. Será que estou ouvindo de verdade o que eles, vocacionados,
turma e grupo, querem?
PAPEL
– Sei (pausa) Mas nem tudo está perdido...
EU
– Ah, tem as meninas do Pé na Jaca! Tudo começou com elas. Um trabalho lindo
que foi construído aos poucos, com carinho e que, agora, volta para a
comunidade. Um sonho se realizando. (vagando) É o que fica de bom. De trabalho
cumprido. Tenho orgulho destas meninas.
PAPEL
– Sei... (pensativo) Mas tem que continuar andando. Vamos lá! O ano já está! O
dia já é! Como dizia Walmir Pavam, o seu coordenador de equipe do ano passado.
Vamos, vamos!!
EU
– Sim... (voltando para as anotações) Então, o esboço, o rascunho deixa de ser
apenas contorno. O processo criativo com a turma começa a ter uma forma. Um
tatame montado na sala multiuso delimita o espaço da cena e todos em volta começam
a improvisar suas inquietações. No lugar da fala, da palavra, uma dupla de
violões dialoga na situação criada pelo olhar, pelo objeto, pelo outro. Uma
nova experiência. Uma boa e surpreendente experiência para mim e para eles. Aos
poucos, outros sons, aparecem. O jogo e a cumplicidade ficam cada vez mais
fortes entre eles.
PAPEL
– (interrompendo) É. Só falar não dá conta.
EU – Sim... PRESENTES para a equipe. A Melissa pediu
que a gente levasse UM PRESENTE para o OUTRO. Uma citação. Um livro para nutrir
a equipe... Vem do Danilo: a trajetória do projeto vocacional para a Ana; um
texto sobre performance e teatro para todos; provocações estéticas para os meninos
que querem montar Nelson para mim; uma música da Banda dos Velhinhos da Lapa
para o Marcelo. Vem do Marcelo: café e biscoito. Biscoito e café. Café e
biscoito para aquecer, acolher todos. Vem da Ana: um poema cuidadosamente
enrolado e amarrado com fita: ESPEREMOS... “Amor, um dia farei um poema como tu
queres dicionário ao lado... não falarei de negros de revolução de nada que
fale do povo serei totalmente apolítico...”
PAPEL – E de você?
EU – Doce de infância, jujubas. E no ouvido de cada um
o texto de uma vocacionada do ano de 2008: “O HUMANIZADOR AZUL – os artistas só
existem para presentear o ser humano. Se eles não existissem o mundo seria
ainda mais negro e sem graça, uma utopia negativa, as pessoas estariam
concentradas em si e fechadas para possibilidades futuras – COMO TOMAR SORVETE
DE ROXO-PÚRPURA COM COBERTURA DE ROSA-CINTILANTE, por que não?... os presentes
são fontes de vida inspiradora, a graça de viver humanamente, pois eu digo,
como imatura que sou se há um pouquinho de azul em nossas vidas é culpa dos
ARTISTAS”.
PAPEL
– (interrompendo) Como você se vê neste momento?
EU
– Ah, já ouvi isto antes... (pensando um pouco) “Se sabemos exatamente o que
vamos fazer, para quê fazê-lo?” (em pensamento pego a fala de Pablo Picasso
emprestada) Ela me diz tanto neste momento! Na verdade, desde algum tempo, esta
frase não sai da minha cabeça: quero me deixar levar, sem tirar os pés do chão,
sentir mais o encontro (pausa) deixar o encontro conduzir o encontro (pausa)
arriscar mais (pausa) preservar e aprofundar o lugar da criação (pausa) ouvir o
chamado do coração (pausa)... Eu odeio Nelson, e você? (pausa) Quero ser o que
desejo ser (pausa)...
PAPEL
– (interrompendo) Qual o desafio que alimentaria os artistas vocacionados no
caminho da teatralidade?
EU
– A Melissa nos orienta: “É preciso imprimir no papel uma foto do processo com
eles. Do agora, do antes e do futuro e, a partir daí traçar os desafios”.
PAPEL
– Comece com o ANTES....
EU
– (revirando as minhas anotações) Começo a desenhar alguns pontos importantes
pra mim neste começo de trajeto do olhar: Em algum momento, sinto insegurança em
realizar um processo de criação com a turma de iniciação. Será que consigo
compreender o que eles querem? Os desejos aparecerem de forma caótica. Parece
que eles querem dizer tudo ao mesmo tempo. Como organizar este material com
eles e instaurar um ambiente criativo onde o olhar poético seja significativo e
revelador pra mim e pra eles? No desenho aparece também a minha preocupação em
estimular os grupos. Eles precisam ter consciência do trabalho desenvolvido até
o momento e como dar continuidade, sem perder o fôlego.
PAPEL
– (pensando alto) É, parece que já vi isto antes.
EU
– (sem ouvi-lo) No mesmo papel o desenho do AGORA: os passos desta minha
trajetória dizem que é preciso integrar os novos vocacionados com quem já está
sem perder ou abandonar o que já foi conquistado. Com os grupos: aprofundar a
pesquisa de cada um e criar estratégias novas de aproximação com a comunidade.
PAPEL
– (interrompendo) Já estamos no final do mês de junho!!! O que você consegue
ver no seu processo com os vocacionados?
EU
– (caindo em si) Puxa como o tempo passa rápido. Parece que foi ontem que
começamos os trabalhos....
PAPEL
– (olhando para o relógio) Tempo. Falta tempo. Falta. Tempo. Falta mesmo?
EU
– Nos meus pensamentos vejo a Melissa dizendo: “No agora, qual o processo
artístico de cada um de vocês? Como recriar o espaço da reunião de equipe para
contribuir com que está sendo criado no mundo de lá? Como despertar o poético
nos vocacionados? O que me atravessa poeticamente?”
PAPEL
– (no ritmo do relógio) O tem-po es-tá pas-san-do...
EU
– Chega! Assim você me confunde!
PAPEL
– (dando risadas) O tempo está passando...
EU
– Eu estou diante de você e uma ideia para a turma surge depois de assistirmos
o espetáculo “O Coro dos Maus Alunos” de Tiago Rodrigues: buscar com a turma de
iniciação, na sua maioria adolescente, uma forma de expressar os seus dilemas
muito próprios desta fase de descobertas e muitos conflitos.
PAPEL
– Uma nova forma de deixar suas impressões em mim.
EU
– Isto! Um poema coletivo. Palavras soltas que se transformam em imagens e que
se transformam em frases e que colocadas uma a uma aleatoriamente no papel vão
criando um poema...
PAPEL
– (feliz) Começo a ficar colorido! É divertido!
EU - (pegando o papel colorido) Vou ler um trechinho para você:
Queriam
que eu morresse
Sempre
tem morte no meio
Tem
sempre pessoas novas
O
que teve? Por que teve?
Sentir
um sentimento que jamais pensei em sentir
O
que teve?
Por
que teve?
Fizemos
o improviso
Que
nos fez pensar
Mesmo
na beira do precipício
Existia
alguém
Para
salvá-la da morte
E
lhe mostrar a beleza da vida
O
que aconteceu?
Apareceu
gente nova no pedaço
Risadas
Talvez
eu precise tomar uma decisão
Vir
ou não vir, eis a questão!
Nem
sempre o abismo tem escuridão
Tentando
salvar sua amada
Ele
caiu, mas não desistiu!
Fizemos
uma cena a partir de uma estória
Meu
Deus do Céu!!! Será inventada?
Todos
deram ideia para o improviso
Fala
isso agora! Fala
Levantou
e continuou
Repetir
a cena para melhorar
Para
aprofundar
Para
perceber os detalhes de cada coisa criada
Eu
sinto o movimento do vento
Nossa,
foi fundo!
Você
lembra?
O
medo está apenas em nossas mentes
O
tempo todo
O
tempo todo
É
O
tempo todo
Acabou?
PAPEL
– (visualizando) E o espaço cênico se transforma.
PAPEL
– Ufa!
EU
– Um experimento, mas acho que encontrei o caminho criativo para a turma. Ufa!!
PAPEL
– Você falou, falou, falou da turma e os grupos? A que pé anda?
EU
– As inquietações são muitas. Estamos em agosto e os grupos caminharam pouco.
Bem pouco.
PAPEL
– Quase parando...
EU
– O Grupo Os Filhos, depois da desistência de alguns integrantes...
PAPEL
– (interrompendo) Que afetou o grupo...
EU
– É (pausa). Então... Mesmo fragilizado, o grupo revisitou todo o processo e
deixou o Nelson Rodrigues de lado e começou a questionar o que queriam fazer
juntos. O Ricardo, líder do grupo, trouxe algumas propostas...
PAPEL
– (lendo as minhas anotações) .... o texto “Entre Quatro Paredes”. O texto
“Esperando Godot”. O texto “Zona Contaminada”....
EU
– Textos que, de alguma maneira, poderiam traduzir o que o grupo estava
sentindo no momento.
PAPEL
– (continua lendo) .... O Igor trouxe um roteiro que ele tinha escrito para o
grupo á um tempo atrás....
EU
– SICÁRIO (assassino de aluguel).
PAPEL
– (comentando) Ele adora este tipo de assunto!!!
EU
– Relendo o texto percebi que tinha muitos elementos de melodrama e comecei a
levar alguns procedimentos de investigação do tema. Trechos de filmes que
pudessem inspirar a construção deste roteiro.
PAPEL
– (continua lendo) “Sin City” e “Nosferatu” atravessaram os encontros e
inspiraram a releitura do roteiro.
EU
– Um novo olhar para o trabalho.
PAPEL
– E as meninas? Do Pé na Jaca?
EU
– Acho que elas se perderam um pouco da trajetória imaginada para este ano. Os
problemas pessoais das integrantes afetaram o que vinha sendo construído. Estão
num momento de transição. Desejam concluir o processo do espetáculo “Quero Ser
o que Desejo Ser” com a comunidade e ....
PAPEL
– (interrompendo) Afinal foram 03 anos trabalhando juntas.
EU
– ... e o desejo de continuar um novo processo para o grupo.
PAPEL
– E o que fazer agora?
EU
– Olhar a trajetória destes três coletivos até aqui. Olhar com carinho.
Trajetória construída no seu tempo. No tempo de cada um.
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